Em 1912, ano em que copia e ilustra La Légende de Saint Julier L’Hospitalier [A Lenda de São Julião Hospitaleiro] de Gustave Flaubert, Amadeo de Souza-Cardoso estava profundamente envolvido no imaginário medieval. É desse período que datam Le Prince et la Meute [O príncipe e a matilha], exposto no Armory Show em 1913, outros castelos, como o Ex-libris do álbum XX Dessins, e Stronghold/Chateau fort (Fortaleza) — exposto e vendido no Armory Show, tendo integrado a coleção de Arthur Jerome Eddy que atualmente pertence ao The Art Institute of Chicago —, além de uma série de brasões de cidades francesas, como Armes de Bretagne, Brazões das Cidades de Rennes e de Saint-Malo, de Bordeaux, Montauban e Agen, de Beziers e Albi, de Montpellier e Narbonne, entre outras.
Enquanto, em Stronghold, Amadeo pinta o castelo visto de cima, tornando o espaço mais acessível ao observador, o castelo da coleção do CAM surge mais distante, mas não deixa de convidar a um percurso ziguezagueante até à entrada. Aparentemente mais luminoso, com tons mais quentes do que o castelo do The Art Institute of Chicago, que é praticamente todo azul, o céu escuro introduz uma nota dissonante, talvez o prelúdio de uma tempestade.
Estas obras estão ligadas à sua admiração pela arte medieval e pelos pintores «primitivos» que marcaram a sua viagem a Bruxelas em 1910, quando o artista confessou numa carta ao tio:
«Passo os meus dias com alguns pintores primitivos que são os meus idolos. A eles devo grande parte da grande evolução que tem atravessado o meu espirito. Converso com elles manhãs inteiras e elles me dizem grandes coisas que eu escuto sedento. Essas grandes almas antigas absorvem hoje a maior admiração da minha alma.»[1]
Amadeo assumiu aqui o forte impacto da arte medieval, fenómeno perfeitamente enquadrado no ímpeto primitivista muito marcado pelo regresso às origens e que teve várias declinações, englobando a arte pré-renascentista, artes africanas, orientais, aborígenes, a arte naïf, a arte popular europeia ou mesmo o desenho infantil. Estes estímulos — que frequentemente se articulam com questões coloniais, de classe ou de género — foram apropriados por vários artistas do século XX, tendo em vista o combate ao academismo e a renovação da arte.[2]
Por um lado, os castelos de Amadeo recuam tematicamente à cronologia medieval. Por outro lado, o seu modo de representação altamente estilizado e destorcido aproxima-se da ilustração, da arte naïf, ou, talvez, do desenho infantil, tão evidente nas pequenas árvores à entrada das muralhas. Amadeo, como muitos modernistas, apreciava a pintura naïf de Henri Rousseau, tendo adquirido um exemplar de Henri Rousseau et les primitifs modernes, de Wilhelm Uhde[3]. Já a ligação do artista português ao desenho infantil, que tanto interessava a Kandinsky e a Klee, não está documentada.
Marta Soares
[1] Amadeo de Souza-Cardoso, Carta a Francisco Cardoso, Domingo 6, 1910, publicada em Fernando de Pamplona, Chave da Pintura de Amadeo: As ideias estéticas de Sousa-Cardoso através das suas cartas inéditas, Lisboa: Guimarães Editores, 1983, pp. 56-57.
[2] Ver Mark Antliff e Patricia Leighten, “Primitive”, in Robert S. Nelson & Richard Shiff (eds.), Critical Terms for Art History, Chicago: University of Chicago Press, 2003, pp. 217-233.
[3] Catarina Alfaro, “Fotobiografia”, in Helena de Freitas (coord.), Amadeo de Souza-Cardoso. Catálogo Raisonné: Fotobiografia, Lisboa: CAMJAP – Fundação Calouste Gulbenkian; Assírio & Alvim, 2007, p. 141.