«Vou tentando pintar qualquer coisa mas está a ser difícil acreditar no que faço.» – escreveu Manuel Botelho, em 2005 – «Aliás, está a ser-me difícil acreditar seja no que for (da política às artes isto é uma miséria). Nada me interessa verdadeiramente e há muito que não vejo uma exposição de coisas recentes que me entusiasme.» (1) O dessasossego interior do artista era a garantia de uma crise: uma crise na representação, recriando uma realidade exterior cada vez mais kafkiana; e uma crise nos meios da representação, tendo abandonado temporariamente o desenho e a pintura pouco depois de ter executado esta obra, para se dedicar à fotografia.

 

A espiral artística desses últimos anos revela aliás um curioso entrelaçamento de temas de guerra e de religião, misturando sagrado e profano a uma rápida velocidade. Aos temas cristãos da Anunciação ou da Pietá, sucedem-se políticos obscuros a selar promessas com apertos de mão – promessas que, como as suas figuras de carvão sobre o papel, exibem a sua total falta de integridade, numa incompletude de linhas e cores tremidas que esboçam contornos imprecisos às personagens. Contudo, se os seus gestos se duplicam, também os dois grandes temas político-religiosos coexistem, através duma provável citação à pintura antiga: a figura apostólica ao fundo, algo miguelangelesca, que em gesto de benedictio se oferece ela própria como duplicação dos políticos.

 

 

(1) Manuel Botelho, 31 de Agosto de 2005. Depoimento disponível em www.manuelbotelho.com

AR