• 1990
  • Papel marouflé e Tela
  • Tinta acrílica
  • Inv. 92P213

Paula Rego

O Tempo – Passado e Presente

Em 1990, Paula Rego foi nomeada Artista Associada da National Gallery de Londres, integrando assim um projecto cujo objectivo era propor a artistas que, durante um ano, realizassem obras inspiradas na colecção do museu. O Tempo — Passado e Presente resulta desse desafio e integra um conjunto de que fazem parte outros trabalhos, como A Prova, O Sonho de José e Jardim de Crivelli.

 

Falando sobre a experiência de Artista Associada da National Gallery, Paula Rego afirma: “Roubo as coisas — roubo as histórias, roubo os animais, a maneira como aparece isto ou aquilo, a maneira como alguém pinta a pele. Mas é algo mais do que caçar furtivamente… senti-me mais como o bobo, como as criadas na peça de Genet que vestem as roupas da senhora quando ela não está. Como as meninas que usam a maquilhagem e casacos de pele da mãe. No passado, senti-me mais à vontade com a arte popular do que com a Arte Erudita — conversas de cozinha, imediatas e corajosas. Mas, claro, neste caso, com a Arte Erudita, uma pessoa está no meio dela, com os grandes mistérios dos quadros lá em cima. Não estou preparada para lidar com isto, porque a enormidade do sentimento põe-me a cabeça às voltas, com vertigens ou algo semelhante e, por isso, a minha única saída é tirar um bocado aqui e um bocado acolá e esperar que as histórias mantenham o todo unido.”*

 

Na obra em questão, Paula Rego parece fazer a simbiose destes dois mundos, trazendo a “arte erudita” para um ambiente doméstico, “roubando-a” do museu para a intimidade de um interior privado, apropriando-se dela nessa trasladação metafórica. Efectivamente, podemos discernir a presença neste quadro de obras da colecção da National Gallery. Desde logo, a concepção geral do mesmo foi inspirada em São Jerónimo no seu Gabinete de Trabalho, de Antonello de Messina (c. 1456), “pintura mágica” nas palavras da autora: “O São Jerónimo, de Antonello é uma pintura mágica — uma casa dentro de uma igreja, com o São Jerónimo aí sentado e dentro da igreja, mas não dentro da casa dele, um pequeno leão corre para nós, vindo do fundo. É um quadro mágico. De qualquer maneira queria fazer um retrato de um amigo meu, o Keith, como o santo, sentado no quarto com as suas memórias. Algumas destas memórias provêm de quadros da National Gallery e outras são inventadas.”

 

O homem do quadro representa assim o passado — tanto mais evidente quanto pelo contraste com as suas crianças representadas —, e entre as “suas memórias” encontramos mais alguns quadros da National Gallery, literalmente dispostos na composição como “os grandes mistérios dos quadros lá em cima”: sobre a porta O São Sebastião, de Gerrit van Honthorst (c. 1623), do lado esquerdo deste São Francisco a Meditar, de Francisco de Zurbarán (c. 1635-9) e, por baixo deste último, Abade Santo António, pintura que consta no reverso do Tríptico de Donne, da autoria de Hans Memling (c. 1478).

 

No entanto, como também nos diz autora, estas memórias “eruditas” misturam-se com outras, que para ele inventou. Para a parede da esquerda, criou uma pintura onde observamos uma freira a oferecer um rapaz como sacrifício a uma rapariga do mar que devora marinheiros.** A temática do mar repete-se na pequena escultura de uma sereia e na fotografia/desenho de um rapaz vestido de marinheiro que ladeiam este quadro, bem como no barco que Paula poisa sobre o móvel verde, juntamente com uma pequena estatueta de um rinoceronte e de uma dama antiga. As memórias do homem parecem assim saturar as paredes do espaço representado, misturando a arte erudita da National Gallery com objectos quotidianos e com pequenas imagens que remetem para a infância: a figuração da brincadeira no friso de azulejos, a imagem do pequeno marinheiro, a imagem, por baixo desta, de um rapaz defronte a um animal, ou ainda abaixo, uma imagem do que parece ser uma criança vestida de varina.

 

O espaço estrutura-se numa triangulação a convergir para um ponto de fuga: uma porta de acesso a um exterior aberto e luminoso, que deixa entrar a luz e o ar neste interior repleto de imagens e de memórias. A povoá-lo, cinco personagens. Em primeiro plano, observamos uma criança que se debruça sobre um desenho que esconde, observada pela figura central do idoso, de olhar benevolente e presença imponente.*** Do lado direito, uma alcova verde de onde emerge um bebé, que nos fita e sobre o qual paira a figura de um anjo de um grande quadro que resolve o espaço na parte direita da composição. Em segundo plano, no ponto de fuga, uma mulher idosa recebe amistosamente uma criança vinda do exterior.

 

Das clássicas três idades, vemos apenas duas representadas: idosos e crianças, passado e presente do tempo. O passado carregado das suas memórias e histórias vividas, o presente marcado em branco e no não ainda configurado: o papel branco do desenho que não podemos ver, o olhar surpreso e suspenso do bebé, uma paisagem luminosa e vazia que enquadra a criança do exterior. Será o futuro o desenho da criança a que tanto nós como o idoso não acedemos?

 

Impossível não estabelecer ligações entre esta obra e As Meninas de Velásquez: a representação do artista no acto de criar (sem que também aqui nos seja possível ver a sua obra), os quadros dentro do quadro e a porta fundeira de onde emerge uma personagem são elementos comuns. Convenções pictóricas que a artista reelabora, roubando-as para uma sua casa na qual encena cenográfica e narrativamente uma outra história ou parábola.

 
 
 

* Depoimento de Paula Rego citado por Colin Wiggins, “Histórias da National Gallery” in Paula Rego. Histórias da National Gallery, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian – Centro de Arte Moderna, 1992, s. p.

 

** “É uma lenda que eu inventei sobre uma rapariga do mar que devora marinheiros. Este irmão de São Jerónimo era marinheiro e foi oferecido em sacrifício a esta rapariga do mar por uma freiras que tinham uma escola e eram muito severas.” Depoimento de Paula Rego citado por Colin Wiggins, “Histórias da National Gallery” in Paula Rego. Histórias da National Gallery, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian – Centro de Arte Moderna, 1992, s. p.

 

*** “A pequena artista sentada à direita, prestes a começar um desenho, é, de facto, a artista de O Sonho de José, mas aqui é muito mais nova (…). “Está a fazer um desenho secreto”, diz Paula. “Não queria colocar um desenho neste espaço, senão toda a gente via o que era. Queria que ninguém o visse, porque é muito secreto.” É como se a própria Paula são soubesse o que desenha a rapariga, como se as personagens que ela cria tivessem vida própria, escondida até da criadora.” Colin Wiggins, “Histórias da National Gallery” in Paula Rego. Histórias da National Gallery, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian – Centro de Arte Moderna, 1992, s. p.

 

 

 

 

Luísa Cardoso
Julho 2014
TipoValorUnidadesParte
Largura183cm
Altura183cm
TipoAquisição
DataMaio 1992
Não Te Posso Ver Nem Pintado
Fundação de Arte Moderna e Contemporânea - Colecção Berardo
Curadoria: Fundação de Arte Moderna e Contemporânea - Colecção Berardo
15 de Setembro de 2008 a Agosto de 2009
Museu Colecção Berardo - Arte Moderna e Contemporânea
Nova apresentaçºao da colecção Berardo com exposição intitulada "Não Te Posso Ver Nem Pintado", que será uma reflexão sobre a pintura Figurativa ao longo dos séculos XX e XXI.
Atualização em 23 janeiro 2015

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