Quando Rui Chafes refere o facto de a sua obra ser quase barroca, por se basear no princípio da ilusão, di-lo a propósito desta bola de ferro pintado, que considera uma suma de longos anos de trabalho. O ferro tem sido o material de eleição das suas esculturas, pintado de preto ou cinzento «para que se esconda como material».*
Em Durante o Sono o artista explora, como em muitos trabalhos, uma falsa leveza, uma qualidade de potencial transmutação que deve advir dessa linha contínua, que quer tornar perceptível, entre as formas orgânicas da natureza e os dispositivos mecânicos do que poderiam ser, aos nossos olhos, máquinas de guerra ou de tortura; entre um estado de alma e uma compreensão do mundo que pressente que há algo para além do visível; entre a dor ou a consciência da morte e a exaltação da beleza, de ressonância romântica. «A morte é o que nos mantém acordados», dirá.
Eleva-se uma esfera negra e pesada, como sucede com algumas outras obras da mesma série. Um ponto negro na matéria. A sua suspensão/elevação/ amparo figura uma derivação, filamentos, uma escorrência daquela matéria. Indicia mobilidade e enraizamento. A matéria densa e escura sobra, deixa rasto; ou ganha raízes, pernas, tentáculos, esboça um carácter orgânico. E permite, na zona desses suportes, que o vazio seja parte deste volume, que ele se recorte, faça parte da força de elevação; que o perímetro da obra se abra a alguma indefinição e o destino da esfera também. O equilíbrio é dado como sólido, mas inesperado, a relação da imagem de peso com a de fragilidade, invertida, a questão da gravidade interrogada. O título Durante o Sono referir-se-á a um momento de pesadelo? Este organismo figura o próprio sono? Ou uma percepção assustadora da sua estranheza?
Dentro da série de bolas negras sobre filamentos que realizou entre 1998 e 2001, encontram-se títulos elucidativos como Suave medo escuro, Amanhecer, Respiração, A Alma, prisão do corpo, A tua sombra… A crença de Chafes na capacidade mobilizadora da arte e na sua função de catalizador no conhecimento das forças escondidas que nos habitam e habitam a natureza, levam-no a afirmar: «Para mim, o importante é a radiação, a energia que um objecto possui, é aí que reside o meu trabalho. Por isso não faço múltiplos. Interessa-me a alma de um objecto»; e mais adiante: «Se a arte não nos desperta, então não há razão para a fazer. E quem a contemplar perderá o seu tempo.»**
Leonor Nazaré
Maio 2010
* Em «Conversa entre Rui Chafes e Doris Von Drathen, Guincho, 19 de Outubro de 2001», in Rui Chafes, Um Sopro (esculturas 1998-2002), Porto, Galeria Graça Brandão, 2003, p. 244.
** Idem, pp. 246-247.