O título eleito para o guache, “Os Dois Vizinhos Separados por um Rio de Sangue”, denota de imediato a leitura de Paula Rego sobre o conto em questão, cuja crueldade parece contrastar, ironicamente, com o seu grafismo aparentemente decorativo e ligeiro.
No conto em questão, os dois vizinhos, ligados por um profundo ódio e inveja, são instigados pelo rei a tornarem-se amigos, com a promessa de que aquilo que um pedir, o rei o dará ao outro a dobrar. Compreendendo os vizinhos que quem antes pedisse necessariamente ficaria em desvantagem, um dos vizinhos pede finalmente que lhe tirem um olho, para que o seu rival fique privado dos dois.*
Paula Rego optou por representar a cena expressando a ruptura intransponível entre os dois homens pelo esquema geral composição. Em primeiro plano, demarcando os limites laterais da composição, são representados dois penhascos, profusamente decorados com motivos florais, no topo dos quais estão os dois vizinhos. No fosso criado entre os dois penhascos, abre-se uma paisagem, que recua até à linha do horizonte, cujo motivo central é o rio de sangue. Num segundo plano, um pequeno grupo de árvores ajuda a equilibrar a composição, pontuando-a e fazendo a transição entre um primeiro plano — decorativamente mais elaborado — e a descrição de uma paisagem em plano de fundo — mais depurada e abstractizante.
Este contraste entre primeiro plano e plano de fundo também nos é oferecido pelas opções da autora na construção das formas: se nos penhascos e nas personagens recorre muito ao desenho, empregando a cor quase que apenas para colorir os espaços deixados a branco pelos contornos da linha, para a paisagem mais recuada emprega sobretudo a cor, numa técnica de diluição entre tons (verde, azul, roxo, amarelo, ocre) onde parece tirar pleno partido das potencialidades do guache.
Mais uma vez, a reinterpretação que a autora nos oferece de uma narrativa é completamente traduzida de uma forma plástica: o ódio e a inveja entre os dois homens, que literalmente os cega, é representado pelo fosso, próximo mas não transponível, que funciona como o eixo da composição.
* Gonçalo Fernandes Trancoso, Contos e Histórias de Proveito e Exemplo, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1974, pp. 32-34
Luísa Cardoso
Julho 2014