Nas diversas versões do conto Branca Flor, a figura enigmática representada neste guache surge jogando entre diversas ambiguidades: entre mulher e pomba, entre o reino animal e o humano, entre figura divina e diabólica, entre personagem coadjuvante e mágica, enfeitiçada e perigosa.
A atmosfera geral do desenho evoca essa estranheza, traduzida sobretudo na representação do trio de mulheres-pombas e nas opções cromáticas que estruturam a composição. Se o vestido sumptuoso da figura principal e a sua pose remetem para o convencional universo aristocrático das princesas dos contos populares, logo a cabeça de pássaro, com um grande olho inumano (que parece surpreender o nosso olhar indiscreto sobre a cena), o bico e duas grandes penas que a coroam nos destabiliza essa primeira leitura, criando uma dualidade atracção/repulsa em relação à sua personagem.
Por outro lado, as opções cromáticas do desenho em tudo contribuem para esta leitura da figura. Jogando com o contraste entre tons quentes (como o horizonte cor de fogo a rimar com os tons do vestido, ou os tons terrosos das árvores e montanhas) e tons frios (como o azul e o verde, também em conjugações paralelas), evocam um ambiente nocturno ou de entardecer, situando assim o momento do conto para que remetem.
O gosto decorativista explorado através do desenho, presente em toda a série, destaca-se também neste guache: desde o detalhe com que especificaas folhas das árvores e demais elementos vegetais, à elaboração do padrão do tecido (constante da série), até às linhas que descrevem a estrutura geral da composição: um grande “v”, composto por duas diagonais ligeiramente descentradas (as das silhuetas das montanhas, em plano mais recuado, e as das penas da cabeça do pássaro); o recorte da figura da mulher-pomba, em destaque no quarto inferior direito da composição, compensada, no quarto simétrico, pela figuração da árvore, cuja escala equilibra a sua presença plástica sem lhe roubar o pretendido protagonismo. Emoldurando toda a composição, um friso amarelo ajuda, por um lado, a destacar os tons ocre do corpo das personagens e, por outro, a abrir e a equilibrar uma paleta predominantemente escura.
A recriação do conto que lhe serviu de mote processa-se, assim, por uma reflexão eminentemente plástica.
Luísa Cardoso
Julho 2014