“As Três Cabeças de Oiro”, talvez o guache com uma formulação mais convencional desta série sobre contos populares, ilustra um conto sobre uma princesa que abandona o seu palácio, devido ao clássico motivo de uma madrasta malévola, levando consigo apenas parcos géneros alimentares. Encontrando pelo caminho um velho, propõe-lhe partilhar com ele a sua refeição, generosidade que lhe granjeará conselhos preciosos, como seja cuidar das cabeças de ouro que encontrará mais adiante no seu caminho. Quando com elas se depara, à beira de um poço, estas pedem-lhe que as lave, penteie e pouse para secar, de modo a estarem bonitas para quando alguém passar. Assim faz a princesa. Como recompensa, as três cabeças concedem-lhe vários dons: “que seja tão bela que encante o mais poderoso príncipe do mundo”, “que tenha uma voz tão doce que exceda o rouxinol” e que “se torne rainha do maior príncipe que reine”. O seu destino assim se cumprirá.
As opções que Paula Rego faz ao nível da composição revelam, todavia, a sua interpretação pessoal do conto. Mais do que o destino clássico da princesa — que, depois de vencer as diversas provações, tem um final feliz à sua espera —, parece interessá-la o tema das três cabeças de ouro. Estas surgem destacadas, em primeiro plano e como motivo central da composição, sendo a princesa relegada para o plano mais longínquo e representada quase de costas, numa rotação de três quartos que não permite ao observador ver o seu rosto — apenas distinguir a sua presença e adivinhar o seu alheamento. São deste modo as cabeças de ouro o tema que mais entusiasma a autora no conto em questão, como também o comprova a diferente formulação que lhe merecerão três anos mais tarde, altura em que voltam a ser tema de uma das suas esculturas em pano, lã, plástico e kapok (Cf. As Três Cabeças de Oiro, 1978, Colecção Inês de Brito).
Enquadradas por motivos florais que exploram a sinuosidade da linha, o primeiro plano das cabeças de ouro estabelece uma relação com o segundo plano da princesa através de uma diagonal, a qual orienta o movimento do olhar entre o canto inferior esquerdo da composição e o seu canto superior direito. O predomínio do desenho na estruturação das formas convive com grandes manchas de cor — como o verde do chão que liga os dois planos, o castanho das árvores —, as quais preenchem de modo colorista os limites impostos pela linha, funcionando, simultaneamente, como o “fundo” sobre o qual, também Paula Rego, “poisa” o desenho.
Luísa Cardoso
Julho 2014