A pesquisa que Paula Rego desenvolve ao longo da década de 70 em torno do universo dos contos populares adquire, por volta de 1977, uma nova formulação. As suas interpretações dos contos e das suas personagens ganham tridimensionalidade e, com ela, uma acrescida liberdade e audácia interpretativa.
Em finais da década, Rego realiza uma série de “bonecos” ou esculturas em tecido: A Princesinha Grávida (inicialmente designada A Princesa de Pele de Burro), A Princesa da Ervilha, A Ninfa dos Mares, O Príncipe Perfeito, o Gato das Botas e as Três Cabeças de Oiro.*
A Princesinha Grávida é, a um tempo, de uma enorme expressividade plástica e de uma transgressão interpretativa audaciosa. O título original da obra — A Princesa de Pele de Burro — ajuda-nos a compreender a narrativa da qual partiu e a adivinhar-lhe significados. Na versão de Charles Perrault do conto em questão, uma rainha, no momento da sua morte, pede ao rei que lhe prometa que apenas se voltará a casar “se alguma vez encontrar uma mulher mais bem feita e mais sagaz do que” ela. Depois de procurar, o rei apercebe-se que só “a infanta era mais bela e possuía ainda ternos atractivos de que a defunta carecia”, o que o leva a querer desposar a filha.
Ao intitular inicialmente esta escultura de A Princesa de Pele de Burro, Paula Rego parece estar a sublinhar a dimensão incestuosa latente no conto, inventando para o mesmo um desfecho distinto — já que no conto a princesa foge do seu palácio para evitar o amor do pai — ou discernindo na gravidez um motivo para a fuga da infanta. Menos transgressoramente, poderá apenas tratar-se de um epílogo ao clássico “final feliz” do conto, no qual a princesa, depois das convencionais provações, acaba por se casar um “um príncipe perfeito”, com a aprovação de um pai então já recomposto dos seus desvios comportamentais. Ou poderá ainda, se abandonarmos as sugestões derivadas do título original da obra, tratar-se apenas de uma “princesinha grávida”.
Podemos, todavia, abandonar estas extrapolações narrativas e ater-nos apenas à dimensão plástica, formal, da obra. Observaremos então como a autora explora a plasticidade dos materiais: o enchimento do tecido cria um rosto com protuberâncias, dúctil e táctil; o corpo é coberto com um vestido de menina, sublinhando a dimensão infantil da personagem; os braços — pela sua proporção e posição relativamente ao corpo — adquirem a importância simbólica de um gesto que parece sinalizar a gravidez; o cabelo, em lã, recolhido de um lado, confere-lhe um ar frágil e desalinhado, longe das perfeições imaculadas; a expressão é fechada, circunspecta, certamente não feliz, esculpida em costuras que lembram cicatrizes.
A princesa que temos diante de nós é uma princesa desmistificada, uma princesa menina, adolescente e grávida — tema, aliás, a que regressará noutros momentos da sua obra.** É, em suma, a desconstrução da mitologia inventada das princesas e, com ela, da inerente estratificação social que sempre enquadra o seu universo, dos mitos de beleza, perfeição moral, felicidade e finais felizes associados.
Na perversão dos idealismos e mitologias dos contos populares que nos propõe com as interpretações plásticas, parece estar uma visão das suas moralidades e mundividências como uma “deseducação sentimental”. Contudo, e simultaneamente, na metamorfose interpretativa que oferece, parece propor-nos uma “educação sentimental” alternativa.
* Destas obras, A Princesinha Grávida e O Príncipe Perfeito (ambas de 1977) pertencem ao espólio do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, A Princesa da Ervilha (1978) pertence à Colecção Manuel de Brito, O Gato das Botas pertence (1978) à Colecção Rui Brito, Ninfa do Mar (1978) pertence a uma colecção privada e As Três Cabeças de Oiro (1978) pertencem à Colecção Inês de Brito.
** Veja-se, por exemplo, a interpretação que faz do tema da Anunciação nas obras que realiza sobre o Ciclo da Vida da Virgem para a capela dessacralizada do Palácio de Belém.
Luísa Cardoso
Julho 2014