Da praticamente inexistente bibliografia sobre a gravura em questão, consta de um catalogue raisonné sobre a obra gráfica da artista que esta é “uma de duas gravuras políticas”, intitulando-se a outra Quebra-Cabeças, também pertencente à colecção do CAM.*
A partir desta informação e tendo em conta a datação da gravura — 1964 — não é difícil especular sobre os possíveis significados desta gravura surrealista. Sobre um fundo negro, destacam-se três personagens em primeiro plano. A de maiores dimensões sugere um animal quadrúpede, de cujo corpo se destaca um longo pescoço com uma pequena cabeça. Na sua parte traseira, é acoplada uma chave — a espada de cortiça a que se refere o título? Por baixo da figura, em jeito de legenda enquadrada por um rectângulo, lê-se: “PÁTRIA”.
Sobre esta figura, paira outra de menores dimensões. À direita deste grupo, observamos uma terceira personagem, alada, equilibrando-se sobre um alto monociclo ao qual se agarra com uma das patas, parecendo suster, horizontalmente, uma espécie de lança (será esta a espada de cortiça, apontada à cabeça do quadrúpede?). No outro braço, observamos um objecto que se parece a uma Cruz de Cristo.
No contexto de ditadura salazarista e de guerra colonial de 1964, a que aludirá a dimensão política desta gravura? Será a figura central do centauro dominado a metáfora do país e a personagem alada com a Cruz de Cristo (símbolo manuelino reelaborado no neo-manuelino pelo nacionalismo oitocentista e ideologicamente reaproveitado pelo salazarismo) o símbolo da opressão do regime ditatorial? T. G. Rosenthal afirma tratar-se de “uma mordaz sátira política, em que Franco e Salazar dançam em cima das costas um do outro”.** Com efeito, Paula Rego afirma que o “monstro” de quatro patas representa a pátria sobre a qual dançam duas personagens enlaçadas. Pretendia a autora que esta gravura fosse uma crítica irónica ao fascismo, ironia que se destaca na escolha do título: a espada de cortiça, oriunda de contos infantis, não consegue na realidade cortar nada.***
As ambiguidades interpretativas características da linguagem do surrealismo parecem servir para eludir a censura, mascarando uma crítica que não passaria incólume se ousasse explicitar-se.
* Hannah Begbie, “Catalogue Raisonné” in T. G. Rosenthal, Paula Rego. Obra Gráfica Completa, Vol. 3, Lisboa, Cavalo de Ferro/Jornal de Letras/Visão, 2003, p. 255
** T.G Rosenthal, Paula Rego. Obra Gráfica Completa, Vol. 3, Lisboa, Cavalo de Ferro/Jornal de Letras/Visão, 2005, p. 15
*** Depoimento de Paula Rego por correspondência electrónica, datada de 13.03.2014.
Luísa Cardoso
Julho 2014