Maria Capelo na Coleção do CAM
Coloca uma palavra
No vale da minha mudez
E planta florestas de ambos os lados,
Para que a minha boca
Fique toda à sombra.
Ingeborg Bchmann
Secreta e silenciosa, como poucas na paisagem da arte contemporânea portuguesa, a obra de Maria Capelo tem vindo a constituir-se como uma lenta e perseverante construção visual e semântica, bem próxima do trabalho poético, entendido como processo de escavação, redução e modulação.
Combinando um escasso conjunto de elementos, entre os quais pontifica a árvore, denominador comum e omnipresente, o trabalho da artista em pintura e em desenho prossegue a milenar tradição paisagística, transversal a toda a produção artística, do Ocidente ao Extremo Oriente.
A paisagem tem dois tempos, um geológico, lento, parecendo, ilusoriamente, anterior e alheia à ação humana, e o outro presente, urgente, marcado pela fragilidade, anunciando, metonimicamente, a fragilidade do mundo e da existência.
As paisagens de que Maria Capelo parte são sempre lugares concretos, que existem. A zona do Baixo Alentejo, a sul de Portugal, por exemplo e sobretudo, mas também a zona de Piemonte, no norte de Itália, ou a Estremadura espanhola. «O meu trabalho começa sempre com a observação direta das coisas. Mesmo quando não trabalho a partir destes sítios, eles são a minha referência primeira. Sítios isolados, agrestes, que não parecem ocupados, mas também não estão abandonados. Desordenados.»
Perguntamo-nos: porque teima em persistir, nas artes visuais, o género da paisagem? Conforme nos diz Orlando Ribeiro, geógrafo português e um dos protagonistas da afirmacão moderna da disciplina, «a paisagem é uma criação histórica, contém gravadas todas as marcas do que aconteceu, e, ao mesmo tempo, tudo está sempre em perigo». Esta afirmação dá-nos uma pista sobre a profundidade, a transparência histórica da temática e prática da paisagem.
«A exaltação de que tudo pode acontecer, que já está a acontecer na paisagem que nos rodeia, e ao mesmo tempo a perceção de que todos os acontecimentos e ações no passado, humanos ou não, ficaram gravados e deixaram marcas (“Para onde quer que se olhe há uma alegria enterrada”, uma frase de um poema do Holderlin, que roubei para nomear uma outra exposição…), é para mim verdadeiramente arrebatadora. E há os outros acontecimentos, tão fugazes como um vento que passa e o cantar dos pássaros.»
Além da observação direta, Maria Capelo trabalha com registos fotográficos. Há na fotografia um duplo movimento, contraditório e aparentemente inconciliável: a fotografia fixa e ao mesmo tempo abre um horizonte percetivo. Para a artista, as fotografias são uma espécie de prova de realidade, no sentido imanente e documental do termo. Mas as fotografias – e aqui temos a medida desta assimetria, propriamente constitutiva da ontologia da imagem fotográfica – podem ser também materiais que nos captam, que devolvem, o mistério, enigmática imanência das coisas na natureza, isto é, a dimensão invisível, o sopro da paisagem.
Hoje, a investigação visual de Maria Capelo afigura-se-nos, mais do que nunca, como uma evidência e uma urgência. Hoje, que vivemos com a consciência cada vez mais obsessiva da nossa precariedade – não terá sido essa consciência de nós mesmos enquanto seres finitos que alimentou e trouxe até hoje a prática da pintura quando, segundo todas as predições, deveria ter já perecido? –, o labor lento e convicto da artista, sempre em diálogo com outros criadores (pintores, escritores, cineastas), na boa tradição humanista, evidencia não só o enigma, como a beleza e a tensa fragilidade da nossa existência, num tempo em que mais e mais nos questionamos sobre nós próprios e sobre como chegámos a este ponto.
As pinturas de Maria Capelo agem sobre nós de várias formas, desde logo pela sua escala humana, que convoca uma relação física, corpo-ecrã, com a imagem, ou melhor, com o lugar que a imagem funda, mas também pela complexa relação espacialidade-temporalidade que criam e que se vai insinuando no movimento-tempo, desejavelmente longo, de aproximação do espectador à tela.
A propósito das pinturas presentes na exposição, a artista refere que «as árvores são o princípio de tudo e é à volta delas que surge o espaço na tela. “A palavra paisagem pode substituir-se pela palavra espaço” [ainda Orlando Ribeiro]. Começo por um elemento, depois há um outro que se lhe junta e começam as relações de força entre eles. Quando o espaço já existe, este pode até destruí-las – às árvores – apagá-las ou alterá-las pela mudança de escala, da luz ou com a cor, mas sem elas ele não existiria. Não há um projeto delineado à partida, nem sequer um esboço na tela. Com o vocabulário que vou reunindo (árvores, arbustos, caminhos) vou compondo tudo, pouco a pouco, num trabalho lento e paciente».
Como diz Maria Capelo: «Não se deve perder o pé do mundo à nossa volta, senão vai-se o mistério».
Como diz Kafka: «Na luta entre ti e o mundo, apoia o mundo.»
Nuno Faria
* Texto publicado no catálogo da exposição Tudo o que eu quero – Artistas portuguesas de 1900 a 2020.