Os Encontros com António Dacosta

As Escolhas das Curadoras: Patrícia Rosas destaca «Serenata Açoreana» de António Dacosta.
09 nov 2020

Quando terminei a licenciatura em História Moderna e Contemporânea estava certa de que o meu caminho deveria ir ao encontro da História da Arte. Debruçara-me obsessivamente sobre as interrogações que Heidegger deixara em aberto n’A Origem da Obra de Arte, fascinada pela obra que abre e instala um mundo: «Ao abrir-se um mundo, todas as coisas adquirem a sua demora e pressa, a sua distância e proximidade, a sua amplitude e estreiteza»1.

Foi com prazer que no meu primeiro ano de mestrado na FCSH da UNL encontrei António Dacosta. O livro de Rui Mário Gonçalves publicado pela Imprensa Nacional Casa da Moeda, em 1984, e o estudo que eu dedicava então ao surrealismo português deixou-me uma mente ávida e sequiosa. Assim, decidi que a minha dissertação seria sobre a obra pictórica de Dacosta, sobre os encontros e desencontros de um artista que deixara de pintar durante quase 30 anos e que, por isso, tinha vivido duas vezes.

 

Páginas do livro de Rui Mário Gonçalves, «António Dacosta». Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1984.

 

Contudo, as vicissitudes da vida, como se costuma dizer, não proporcionaram um fim feliz a este primeiro encontro. Terminei a minha tese de mestrado, anos depois, sobre filmes dos anos 70 de artistas portugueses, como referi em texto anterior.

Mas como a vida dá, em abono da verdade, muitas voltas, António Dacosta veio ao meu encontro em meados de 2010, quando no CAM, sob a direção de Isabel Carlos, se decidiu investigar e trabalhar intensamente este prolífero artista para a realização da exposição do centenário do seu nascimento, que aconteceu em 2014, juntamente com o lançamento do primeiro catálogo raisonné digital dedicado a um pintor português. Foi neste reencontro que, durante anos, me pude dedicar, com uma pequena equipa, à recolha, sistematização e estudo da obra de Dacosta.

Serenata Açoreana (1940, data atribuída) surgiu num contexto muito particular:

(1) fez parte da primeira exposição de cariz inteiramente surrealista em Portugal, apresentada sob a rúbrica gráfica EX POEM, na Casa Repe, em Lisboa, de 11 a 23 de novembro de 1940, ano em que o jovem Dacosta de 26 anos terminou o curso especial de Pintura, depois de passar o verão em casa de António Pedro em Moledo, no Minho, perto da fronteira espanhola. Aí é impressionado pelos refugiados perseguidos pelo regime de Franco, na Guerra Civil de Espanha, que vai claramente deixar marcas nas pinturas produzidas para esta exposição e para o surrealismo português.

(2) Serenata Açoreana foi a capa do livro de Rui Mário Gonçalves, atrás mencionado, que inclui uma análise curiosa sobre o retoque realizado pelo artista, em inícios de 1941, que a escureceu e adensou.

(3) Foi também justamente escolhida como uma das 100 Obras da Colecção do CAM, publicação de 2010 para a qual contribuí com um texto sobre a pintura.

 

António Dacosta, «Serenata Açoreana», [1940]. Óleo sobre tela. Inv. 83P122
Folheto publicado por ocasião da exposição «EX POEM». Casa Repe, 11 a 23 de novembro de 1940

 

Os encontros ainda não findaram e, em breve, uma nova plataforma do raisonné da obra de António Dacosta será disponibilizada ao público para não nos esquecermos, como o próprio artista escreveu:

«Um quadro tem os seus meandros
Ir além da periferia que o fecha é quase um acto ritual
Nada de equívocos. É preciso olhar, esquecer e esperar»2.

 

Patrícia Rosas
Curadora do Museu 

 

  1. Martin Heidegger, A Origem da Obra de Arte, Lisboa, Edições 70, 2000 [1935], p. 35.
  2. António Dacosta, «O Pintor Mário Eloy», in Panorama, n.º 20, abril de 1944.

As Escolhas das Curadoras

As curadoras do Centro de Arte Moderna refletem sobre uma seleção de obras, que inclui trabalhos de artistas nacionais e internacionais.

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