Manuel Botelho (1950)
Estas duas pinturas integraram a Coleção do Centro de Arte Moderna em 2001, pouco tempo depois de serem expostas no Museu Nacional de Arte Antiga. Pertencem a um conjunto mais vasto de pinturas e de desenhos, realizado entre 1997 e 2000, em que Manuel Botelho se autorrepresenta em imagens que remetem para temas religiosos – a Paixão de Cristo e a iconografia mariana, isto é, relacionada com a representação da Virgem Maria –, associados a elementos contemporâneos.
Todas as figuras nestas pinturas são autorretratos do pintor. A mais estranha é, sem dúvida, a Virgem na Pietà ser um homem, e esse homem ter a mesma fisionomia do outro homem deitado sobre os seus joelhos.
Piedade ou compaixão é o sentido da representação canónica da Pietà, que representa a Virgem chorando, ou lamentando, o seu filho morto, e que nesta pintura se encontra desviada da sua representação tradicional.
A mais famosa Pietà é uma escultura de Michelangelo, realizada em 1498/1499, na qual Jesus, descido da cruz, está ao colo de sua Mãe, numa posição idêntica à desta pintura. Na escultura, Mãe e Filho são ambos jovens, ambos traídos na sua juventude pela dor que os atingiu e que os une num abraço eterno.
Na pintura de Manuel Botelho as duas figuras desoladas, de idade indefinida, têm como fundo um edifício modernista de Le Corbusier, o convento dominicano de La Tourette (perto de Lyon, construído entre 1953 e 1961). Segundo o pintor, com formação e prática profissional como arquiteto, «Na altura em que fiz estas pinturas e o universo religioso atravessou a minha mente de uma forma renovada, assumindo os aspetos mais positivos das nossas raízes culturais (nos anos 80 as obras mencionavam a religião sobretudo associada a opressão e ao Estado totalitário), achei que os edifícios do Le Corbusier me ajudavam.
Ao contrário das arquiteturas fraturadas e opressivas que evocara no passado […], estes edifícios luminosos respiravam saúde e otimismo. Remetiam as pinturas de imediato para o presente… e/ou para o tempo mítico das utopias do modernismo na arquitetura… criando associações visuais inesperadas para a narrativa.»
Talvez relacionável com esta nota de otimismo que introduziu mesmo na representação trágica por excelência de uma auto-Pietà, o que mais me atrai nestas duas pinturas é a relação entre a ironia, num formato quase caricatural, e a situação a-histórica que representam. Presente na Pietà, ela é, sobretudo, visível na Visitação, onde as duas figuras se cumprimentam, não se tratando, segundo Manuel Botelho de «um cumprimento formal, mas [de] uma aproximação afetiva (o toque das mãos evoca subtilmente a cena da Criação no teto da Capela Sistina)».
Vindas de ou pertencendo a épocas diferentes, como indicado pela indumentária, as duas figuras parecem concentrar-se na tentativa de se (re)conhecerem. Há no seu gesto e na posição dos corpos um pacto de não-agressão e um esforço de coexistência, imediatamente comunicados ao observador.
Recomendo a consulta do catálogo Manuel Botelho. Pintura e Desenho 1997/2000 (Lisboa: Museu Nacional de Arte Antiga, 2000).
Ana Vasconcelos
Curadora do Centro de Arte Moderna
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As curadoras do Centro de Arte Moderna refletem sobre uma seleção de obras, que inclui trabalhos de artistas nacionais e internacionais.
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