Cristiano Cruz
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Leiria, 1892 – Cuito, Angola, 1951
Cristiano, ou Christiano, concluiu o liceu em Coimbra, onde iniciara a obra artística, e veio para Lisboa estudar Medicina Veterinária (1910-15), logo depois da implantação da República. Ainda estudante, ganha reconhecimento imediato pela obra gráfica de humorista, com desenhos publicados regularmente nos jornais (O Gorro, Novidades, A Farsa, A Luta, A Capital, Centauro, Águia, Rajada) e elogiados no seu pioneirismo por Jorge Barradas, Stuart Carvalhais, José Pacheko ou Almada. Com estes artistas, participa na fundação da Sociedade de Humoristas Portugueses, da qual é o terceiro vogal, e expõe no 1º e 2º Salão dos Humoristas (1912-3) no Grémio Literário, Lisboa. Christiano destaca-se no histórico evento modernista pela recusa do cartoon político oitocentista, contrapondo as suas originais formas sintéticas e estilizadas de “caricatura impessoal,” nova tipologia introduzida com sucesso, postulando o artista gráfico qual “romancista do traço” que ilustra ideias de crítica social e dos costumes. Ao mesmo tempo, obtém notoriedade pública em incendiários depoimentos à imprensa, como porta-voz duma geração, anunciando um ideário vanguardista de insubmissão face à expectativa do público e à exigência académica, dando o mote da “guerra à bota-de-elástico!” em repúdio da herança conservadora e tradicionalista do Grupo do Leão, e da “arte que unicamente delicia a vista,” agitando o meio com novas éticas criativas.
Em 1913, em plena polémica da modernidade artística em Portugal, Cristiano abandona o desenho humorístico que o estabeleceu como artista, pondo-o para trás sob a rubrica de “fase de estilização”, e envereda então pelo desenho mais rígido, de violência expressionista a lembrar Egon Schiele, já não para os jornais onde deixa de publicar, mas para o fins da exposição artística. Após 1915, ano em que conclui a sua licenciatura em Medicina Veterinária, a pintura toma no entanto lugar central, então abertamente expressionista e sempre de pequeno formato. Apesar de declarar que “o meio não estimula ninguém”, inicia então uma fase fecunda que corresponde aos últimos anos de criação (1916-19), dos quais sobrevive uma vintena de quadros, que inaugura um idioma consistente e inédito no panorama artístico, com autorretratos, ícones simbolistas e mundanos, em que a pintura se sobrepõe à prática do desenho (com aplicações diretas na tela) e a qualquer intenção humorística dos manequins de outrora, com incontida radicalidade plástica só equiparável a Amadeo. Foram porém mal recebidos criticamente quando mostra nove quadros no 1º Salão de Humoristas e Modernistas (1916), limitando por isso a uma obra a sua entrada no ano seguinte.
Partiu, em Janeiro de 1917, para França, onde combateu na frente ocidental da Grande Guerra enquanto alferes miliciano do 1º Corpo Expedicionário Português. Foi o único artista português de relevo a tomar parte nesta tragédia, da qual resulta um álbum de desenhos a lápis e tinta-da-china, Cenas de Guerra, e a ilustração, com Diogo de Macedo, do livro de Augusto Casimiro, Nas Trincheiras da Flandres (1918). Ainda em França, – com visita breve a Lisboa para defender a tese de doutoramento em Medicina Veterinária – continua a pintar pequenos guaches e óleos sobre cartão, explorando as texturas do suporte, contrastes ferozes de cores, e temas de estados psicológicos extremos, da angústia da guerra à melancolia do dia-a-dia nas cidades – como Senhoras à mesa – que continua ao regressar para Portugal, no final de 1918. A indefinição do período seguinte, com episódios amargos da vida artística levados a peito, impelem Cristiano a terminar abrutamente a carreira artística mais promissora da geração aos 28 anos. Em Outubro de 1919, partiu para Moçambique num exílio voluntário, que ganha contornos míticos entre os artistas da metrópole. Deixando alguns autorretratos, desenhos informais de objetos, e obras menores de paradeiro incerto, o Dr. Sheppard Cruz vive em Moçambique até 1950, exercendo a medicina veterinária nos postos de Lourenço Marques, Quelimane, Magude, Bilene e Chobela, com viagens à África do Sul e duas visitas a Lisboa (1923 e 1930). Em 1951, conflitos políticos levam-no a ser transferido para Angola como veterinário-chefe da província do Bié, sedeado em Silva Porto (atual Cuito), onde morreria pouco depois. Apesar do afastamento precoce do meio artístico que abandonara irreconciliado, as efemérides do cinquentenário da sua morte e centenário do nascimento permitiram resgatar o seu papel tutelar e renovador da arte plástica em Portugal, como expoente de uma promessa modernista e vanguardista nunca totalmente satisfeita, em retrospetivas no CAM e Museu Bordalo Pinheiro (1991), e no Museu da Cidade de Lisboa (1993), além de outras mostras e histórias do modernismo que vêm destacando o seu lugar.
Afonso Ramos
Março de 2013