Cinco anos depois de uma primeira apresentação em 2018, na Delegação em França da Fundação Calouste Gulbenkian, Rui Chafes e Alberto Giacometti são expostos na sede da Fundação Gulbenkian em Lisboa, unidos pelas mesmas palavras — Gris, Vide, Cris —, num espaço maior, diferente e com mais obras.
O tempo que decorreu entre estes dois momentos permitiu que se incorporasse a história deste encontro que, na verdade, se expandiu, no tempo e na geografia, para fora dos limites previamente previstos.
Em 2018, no espaço institucional de um prédio haussmaniano, Rui Chafes recebeu, com as suas esculturas, Alberto Giacometti, conduzindo-nos a uma primeira visão das obras do escultor suíço. Em 2020 houve uma devolução simbólica desse olhar em Stampa, na Suíça; Giacometti acolhe agora, no seu território familiar e artístico, uma poderosa escultura de Rui Chafes, Occhi che non dormono, herdeira de La Nuit, apresentada em Paris e que ficará para sempre a apontar na paisagem o lugar onde Giacometti nasceu e trabalhou.
Chegados a 2023, a exposição que agora se apresenta integra as imagens e a memória destes dois momentos e permite acrescentar um espaço de reflexão.
Mesmo sabendo que estaremos num espaço de museu totalmente diferente, com um projeto de arquitetura específico e com novas obras, é importante transmitir o essencial dessa primeira experiência simultaneamente intelectual e física. Em 2018, Rui Chafes conduziu-nos por uma via de onde foi impossível sair indiferente. A entrada na exposição fez-se pelo interior de uma escultura (Au-delà des Yeux, de 2018), espaço aberto para o negro, num percurso indecifrável e imprevisível que não permitia velocidade ou pressa e exigia um tempo de adaptação e revelação. Vagar, ou lentidão, foi por isso uma das três palavras que fez sentido acrescentar ao léxico que une os dois escultores. Encontramos logo aqui o enunciado de uma rutura, não apenas na relação espacial do visitante com a obra, que se inverte, deslocando-se do lugar passivo de observador externo, para fazer corpo com ela, como na sua relação temporal, necessariamente desacelerada.
O caminho que nos conduz a ver as obras de Giacometti pelo interior de duas das esculturas de Chafes não é fácil, faz-se através de um espaço constrito, que poderá fazer eco com o processo de exasperação que, durante anos, atormentou o artista suíço, na sua tentativa de representar o que via. O que nos leva a recuperar um dos desígnios fundamentais à construção deste projeto: a visão. Mas para recebermos essa experiência de visão e de revelação, somos introduzidos num espaço sensível, onde a emoção é possível. Enfrentamos a escuridão, o desconhecido e o desequilíbrio, ouvimos o som dos passos, sentimos o cheiro do ferro e o contraste das escalas, podemos tocar a escultura ou mesmo senti-la como invólucro ou pele, o que introduz uma dimensão sensorial a esta experiência à partida rigorosamente formal. E que, na verdade, se encontra com os sentidos presentes no seu título: Gris, Vide, Cris.
O corpo nas suas infinitas possibilidades é o centro da exposição, os corpos criados, os corpos dos visitantes e o espaço que existe entre eles.
Sabemos como as analogias formais entre os dois artistas são irrelevantes. Na verdade, o protocolo comparativo entre os escultores ou o próprio modelo da dualidade (dois artistas, um diálogo) acabam por ser ultrapassados. Para lá dessa assinatura dupla, ou da declinação formal entre objetos presentes (e há muito que sabemos que ambos os escultores não fazem objetos), o que nos é dado a experimentar é um campo de forças, atravessado pela ressonância das obras, assim como por essa energia imaterial que, de modos muito inversos, ambos os artistas perseguiram e onde acabaram por se encontrar.
No total, a exposição de Lisboa acrescenta dez obras à sua primeira edição. A imensa generosidade da Fondation Giacometti de Paris permitiu não só reservar a totalidade das suas esculturas mais essenciais, como acrescentar quatro outras, que tornam esta exposição mais densa e a sua teia de relações mais complexa. As novas obras que agora recebemos colocam desafios, impõem-se no espaço com uma corporeidade muito diferente das primeiras esculturas escolhidas, mais vulneráveis e desmaterializadas. São figuras de médio porte, pesadas e majestosas.
Uma nova série de Rui Chafes retoma alguns caminhos e avança outros, mas em todas as obras realizadas para esta nova apresentação encontramos um modo de aprofundar e radicalizar os pontos de tensão, um jogo de oxímoros também entre passado e presente. Algumas destas esculturas (Nada existe) continuam formas anteriores. No avesso destes corpos abandonados, suspensos, onde pela primeira vez o artista rasgou a pele de seda das suas esculturas para deixar entrever a rugosidade e as cicatrizes da sua construção, encontrámos as primeiras marcas deste encontro escultórico.
Tu nem sequer me vês (2021) é uma escultura mais recente, um corpo defensivo e vigilante, feito para viver numa diagonal ou esquina, como massa excrescente. Escultura-gárgula, cumpre no espaço esse seu desígnio histórico, enquanto defende, teatraliza e escoa. Esta gargouille [garganta] parece conter, na poderosa arquitetura do seu alçado de formas, uma outra configuração de grito ou de som, abafado, surdo, derramado. Em tudo oposto à forma exuberante e expansiva do sopro de morte de La Nuit, e em sintonia com a imagem dos corpos de Giacometti, silenciosos, pesados e significantes, sobre as sólidas bases que os sustentam. Será certamente no questionamento desse elemento integrante das obras do escultor suíço que Rui Chafes desenvolve as suas esculturas mais recentes, Aprendemos a esquecer I e II (2021), sobre estruturas que poderemos chamar de «planos de suporte» ou «planos de suspensão». Apoiadas nestas placas de ferro, finas como folhas e precisas como um traço (num angulo específico), estas esculturas, longe de se agarrarem ao chão, são atiradas ao céu, erguem-se como asas partidas, num gesto de projeção impossível. Como se o artista invertesse a sua funcionalidade e, num jogo ótico, suspendesse no chão as esculturas que deveriam flutuar do teto, assim mantendo a sua imponderável vocação.
Neste desafio do olhar, cinco anos depois, assistimos à transformação da luz e ao rasto que transporta. Raras vezes somos surpreendidos por uma experiência artística tão intensa, onde são colocadas de modo estruturante, não ilustrativo e em diálogo exclusivo com a matéria artística, mudanças fundamentais do paradigma estético e ético, que hoje sobressaltam o mundo das artes. Sustentado numa conversa muito antiga que tem sabido continuar com os seus pares (Alberto Giacometti, entre outros), Rui Chafes mantém aceso e desassossegado o questionamento da arte e da sua função no mundo contemporâneo.
Construída sem guião rígido nem tema de agenda, nesta exposição poderemos reconhecer a reverberação intensa do pulsar da humanidade, como aquela que encontramos em cada dedada de Alberto Giacometti.