O Antigo Egito nos Manuscritos Iluminados Europeus

Se na Idade Média os textos católicos foram povoados por temas do Antigo Egito, também a literatura profana, já na transição para o Renascimento, foi influenciada pelo imaginário desta época. Perceba como estas ligações se refletem nos manuscritos iluminados da coleção Gulbenkian, neste texto da conservadora Ana Maria Campino.
Ana Maria Campino 24 nov 2023 8 min
Do pergaminho ao papel

Do Êxodo à Fuga

Cenário de vários episódios da narrativa bíblica, o Antigo Egito e alguns dos seus elementos caracterizadores, como a figura do faraó, o rio Nilo ou o deserto, são várias vezes evocados e ilustrados em manuscritos iluminados europeus dedicados à devoção e ao culto cristãos.

No caso do Antigo Testamento, em particular no livro do Êxodo, destaca-se o ciclo de vida de Moisés, designado por Deus para libertar as tribos de Israel, tornadas escravas pelos faraós. De facto, de acordo com a narrativa bíblica, Moisés, condenado à morte por ter nascido menino hebreu, foi deixado bebé pela mãe num «cesto de junco […] em betume e pez […] num canavial da margem do rio» (Ex 2:3), tendo sido encontrado pela filha do faraó que acaba por adotá-lo e chamá-lo de «Moisés, dizendo: “Porque o tirei das águas”» (Ex 2:10).

Segundo o tratado de teologia Speculum Humanae Salvationis, datado do início do século XIV, e mais especificamente de acordo com um midrash ou comentário bíblico, Moisés ter-se-á inclusivamente cruzado com o faraó em criança, brincando com a sua coroa, num episódio que é visto como um mau presságio pelas autoridades egípcias, uma vez que a lançou ao chão e a pisou. Já adulto, Moisés encontra-se com o faraó no sentido de o convencer a libertar os hebreus, sob pena de o Egito ser castigado por Deus com dez pragas, o que, segundo o Antigo Testamento, acaba por acontecer.

Na sua relação com a vida de Moisés, o rio Nilo, a princesa egípcia e também o faraó funcionam assim como elementos que, através do texto bíblico, dos seus comentários e interpretações e de manuscritos iluminados, compõem o imaginário cristão medieval do Antigo Egito. Na Coleção Gulbenkian, um livro de horas produzido em França entre 1460 e 1470 inclui diversas iluminuras que ilustram estes momentos, com a representação de um bebé a ser deixado e retirado das águas de um rio, assim como da princesa egípcia e do faraó, trajados e coroados à maneira europeia da época em que o livro foi criado.

Após estes episódios, o livro do Êxodo prossegue, reforçando o papel de Moisés como líder da libertação dos hebreus do domínio dos faraós, processo que implicou uma longa viagem pelo território egípcio até à chamada Terra Prometida, incluindo a célebre passagem pelo Mar Vermelho e a travessia pela península desértica e montanhosa do Sinai.

É durante essa viagem que ocorrem alguns dos momentos fundadores do judaísmo e do cristianismo. Deus entrega a Moisés, no Monte Sinai, as Tábuas da Lei com os Dez Mandamentos, episódio que é representado numa miniatura de uma Bíblia Sagrada da Coleção Gulbenkian, datada de c. 1310-1320. Essas tábuas são guardadas na Arca da Aliança, que, por sua vez, é protegida no Tabernáculo, santuário composto por «dez tapeçarias de linho retorcido, púrpura violácea, púrpura escarlate e púrpura carmesim» (Ex 36:8), que se encontra ilustrado no Apocalipse da Coleção Gulbenkian.

Uma outra viagem entre os mesmos territórios, mas em sentido inverso, é referida no Novo Testamento. Segundo o Evangelho de São Mateus (Mt 2:13-15), José foge de noite de Belém para o Egito com a Virgem e o Menino, sob os conselhos de um anjo que lhe aparece num sonho e lhe revela os planos do rei Herodes para matar Jesus. Mas, se este episódio é mencionado tão sucintamente na Bíblia, de que forma a sua representação pode localizar a ação no Antigo Egito? Os manuscritos iluminados da Coleção Gulbenkian mostram-nos alguns exemplos.

No Breviário Franciscano, a viagem de José conduzindo a Virgem sentada no burro e com o Menino ao colo, esquema iconográfico predominante deste tema durante a Idade Média até ao século XV, é enquadrada por uma palmeira, que nos sugere a passagem pelo deserto. No Apocalipse da Coleção Gulbenkian, também uma árvore semelhante a uma palmeira separa dois episódios, reforçando a sua simultaneidade temporal em espaços diferentes: a cena do massacre dos inocentes, dirigido a todas as crianças com menos de dois anos em Belém e arredores sob as ordens do rei Herodes (quando se apercebe da fuga de Jesus), e o momento dessa mesma fuga, no deserto.

Já outros exemplares da coleção, livros de horas destinados à devoção privada sobretudo por membros da nobreza e não clérigos, integram elementos que, embora não resultem de um conhecimento arqueológico do Egito, enriquecem esta evocação geográfica, ainda que provenham de fontes populares, não consideradas oficiais pela Igreja cristã medieval, mas por ela toleradas. Em algumas miniaturas vemos assim, ao fundo, uma vista urbana que, apesar da configuração amuralhada ou da arquitetura típica da Europa medieval, poderá representar Sotinen, referida no Evangelho do Pseudo-Mateus como a cidade egípcia que recebeu a Sagrada Família, na região de Hermopolis.

Em algumas iluminuras figuram também colunas com estátuas, de aspeto clássico ou demoníaco, em queda ou desagregação, representando o milagre da destruição dos ídolos perante a passagem da Sagrada Família. Relatado nesse mesmo evangelho apócrifo, este milagre reforça o imaginário medieval cristão do Antigo Egito como lugar pagão de adoração de vários deuses. O recurso a este episódio neste tipo de livros permite ainda a justificação de profecias do Antigo Testamento (Is. 19:1 – «O Senhor montado sobre uma nuvem veloz, entra no Egito: os ídolos do Egito tremem diante d’Ele» e Jer. 43:13 – «destruirá os obeliscos do templo do Sol, no Egito, e incendiará todos os templos dos deuses do Egito»), situação muito comum numa época em que a imagem servia de estímulo ao comentário teológico dos fiéis, preocupados em associar tipologicamente o Antigo e o Novo Testamento.

A Isis de Boccaccio

Mas se a imagem da Europa medieval relativamente ao Antigo Egito é veiculada em manuscritos iluminados ligados à religião, a literatura profana, sobretudo na transição para o Renascimento, também contribui para a transmissão de uma ideia de Egito, cujas personagens mitológicas ou históricas podem ser revalorizadas graças à recuperação dos autores da Antiguidade promovida pelo Humanismo.

O exemplo de De claris mulieribus (1374) é paradigmático. Nele, o autor florentino Giovanni Boccaccio publica pela primeira vez na história da literatura europeia uma obra inteiramente consagrada a biografias de mulheres ilustres, na qual integra a história da vida de figuras do Antigo Egito, tal como a deusa Isis, assumindo-se como um dos primeiros eruditos europeus da época a libertar-se das leituras teológicas cristãs de que estas personagens dependiam durante a Idade Média.

Efetivamente, inspirando-se em autores latinos, Boccaccio identifica a deusa egípcia com a deusa grega Io, cruzando as suas narrativas mitológicas, o que favorece a legitimação da primeira ao ser associada ao panteão grego. Além disso, Boccaccio descreve Isis como «deusa e rainha do Egito», atribuindo-lhe, além do caráter mitológico, uma dimensão histórica e real, inscrita numa genealogia humana.

A miniatura que acompanha a biografia de Isis no manuscrito Des clères et nobles femmes da Coleção Gulbenkian (tradução em francês da obra de Boccaccio acima citada) exemplifica de forma notável o sincretismo destas narrativas. À direita, a representação de Io num barco parece remeter-nos para uma das versões da história da deusa grega que, transformada em vaca pelo seu amante Zeus/Júpiter e após ultrapassar inúmeras provas, navega por vários mares até se fixar no Egito e recuperar a sua forma humana, fugindo da ira de Hera/Juno, esposa de Zeus que se encontra representada à esquerda da miniatura. Ao lado desta, surge também Isis, deusa e rainha do Antigo Egito já humana, que o iluminador, desconhecendo referentes arqueológicos concretos, reproduz com vestes que poderiam ser de uma qualquer dama da aristocracia europeia tardo-medieval (embora a coroa da figura feminina central apresente uma configuração diferente das habituais coroas reais europeias).

Série

Do pergaminho ao papel

Expostos por períodos mais curtos devido à fragilidade dos seus materiais, os livros e documentos gráficos europeus da coleção são menos conhecidos do público. Nesta série, a conservadora Ana Campino propõe novos olhares sobre estas obras que constituíam um dos conjuntos artísticos prediletos de Calouste Gulbenkian.

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