Festa e intimidade

Momentos de refeição em gravuras e livros franceses do século XVIII

Tanto em ocasiões festivas como em circunstâncias privadas, as refeições tinham enorme importância e simbolismo na corte francesa. A conservadora Ana Maria Campino escreve sobre a representação destes momentos nos livros e nas gravuras setecentistas da coleção Gulbenkian.
Ana Maria Campino 16 nov 2023 3 min
Do pergaminho ao papel

Durante o seu reinado, Luís XV (1710-1774) manteve os principais hábitos de refeição real na corte francesa, estabelecidos ou codificados pelo seu antecessor Luís XIV (1638-1715) para sedimentar a sua imagem de monarca absolutista. O mais solene desses momentos, o festim real, é representado no livro da sagração de Luís XV, que descreve as diferentes fases da cerimónia que o tornou rei (fig. 1).

Noutras ocasiões festivas, como o baile ilustrado no livro que celebra o primeiro casamento de Luís Fernando, filho de Luís XV (fig. 2), eram oferecidos buffets, «com tudo o que havia de mais refinado, em fruta, gelados, vinhos, licores e em toda a espécie de refrescos». Estes serviços de bebidas e alimentos frios, salgados ou doces, apresentavam-se em travessas, cestos ou outros sumptuosos objetos de ourivesaria, cuidadosamente combinados com elementos decorativos, como grinaldas de flores, e iluminados por requintados candelabros, castiçais ou lustres, todos eles dispostos em móveis de aparato.

No quotidiano, Luís XV introduziu, contudo, algumas modificações: as refeições do rei em público deixam de ser tão habituais, instituindo-se a regularidade dos soupers ou ceias nos seus aposentos privados – até então apenas admitidos na corte excecionalmente, no contexto do regresso da caça. Nestes jantares, os convidados já não assistiam em pé ou em bancos à refeição real, sendo chamados a participar e a sentar-se em cadeiras na presença do rei, em torno de mesas frequentemente redondas ou ovais, que favoreciam a convivialidade.

Este ambiente de informalidade, que se propagou a outras residências aristocráticas ou gabinetes privados da corte francesa e esteve na origem no nascimento das primeiras «salas de jantar», é percetível na gravura (fig. 3) que antecede a partitura Le Souper (fig. 4). Incluída no livro de canções que o funcionário de Luís XV De Laborde dedicou à então princesa Maria Antonieta, esta composição musical exalta o amor por uma «jovem Silvie», destacando a liberdade que o ruído confuso da ceia proporciona.

Num registo de maior intimidade, sem a presença de empregados, percebemos que outros momentos de refeição contribuem para o enredo das cenas galantes tão apreciadas pelo gosto rococó da sociedade francesa do século XVIII.  A única chávena com pires (ou, possivelmente, uma taça com prato) acompanhada de uma leiteira que vemos na gravura La Consolation de l’Absence (fig. 5) reforça a solidão da personagem, que interrompe a leitura de uma carta para contemplar o retrato miniatura de um provável apaixonado, que se encontra ausente.

Pelo contrário, na gravura La Crainte (fig. 6), as duas chávenas com pires junto de uma chocolateira parecem confirmar que a figura feminina seminua representada é surpreendida num encontro amoroso ilícito com alguém, que, perante a proximidade de uma terceira personagem, se pôs em fuga, como outros indícios sugerem: a cadeira caída, o pequeno cão agitado, a postura suspensa e tensa da jovem.

Um agradecimento especial a Géraldine Chopin, pelas pesquisas realizadas sobre este tema no âmbito do estágio de formação de conservadora do Institut national du Patrimoine, Paris, e ao investigador João Pedro Gomes (Universidade de Coimbra).

Série

Do pergaminho ao papel

Expostos por períodos mais curtos devido à fragilidade dos seus materiais, os livros e documentos gráficos europeus da coleção são menos conhecidos do público. Nesta série, a conservadora Ana Campino propõe novos olhares sobre estas obras que constituíam um dos conjuntos artísticos prediletos de Calouste Gulbenkian.

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