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O búzio
Do final da época dos altos-relevos montados sobre tabuleiros suspensos que se tornaram distintivos da criatividade de José Escada (veja-se o belíssimo exemplar na Coleção Moderna), a presente obra revela na pequena escala a mestria elegante que o artista lisboeta alcançara com as composições de planos recortados em papel, em folha de flandres ou em plástico acrílico, aqui circunscrita a uma colagem a duas dimensões.
No búzio, solitário sedimento precipitado num espaço sem princípio nem fim, o artista reafirma a sua predileção por um conceito de desenho claro sobre fundo indefinido, sugerindo grande proximidade ao objeto representado: uma malacologia imaginária, concisa e económica, centrada no fóssil, excluindo do campo visual qualquer outra informação. Mas este molusco, provável exemplar de Tritão do Atlântico ou Charonia Variegata, com a sua concha – esqueleto externo – raiada de castanho e branco, com um distinto brilho amarelo por dourado à esquerda e uma sucessão de brancos nacarados, castanhos e beges, é uma síntese poética da forma e da matéria observadas e transfiguradas pela visão interior do artista. E assim, mais do que o detalhe analítico da ilustração científica, os estratos, as pregas recortadas, as dobras e ondas de cor, as curvas e contracurvas aqui tão bem manifestam a complexidade da existência, como que figurando a paupérrima e dificultosa experiência da vida, lembrança da sua brevidade, em união com a vanitas antiga.
No período deste desenho, José Escada beneficiou de uma bolsa de estudo da Fundação Calouste Gulbenkian, tendo retomado a investigação sobre as formas da natureza. Em particular, as plantas e os vegetais foram como uma transfiguração dos temas dos labirintos, dos entrelaçados de cordas e liames, das fibras e dos conglomerados de matéria orgânica (corpos, por vezes) que ocuparam o artista durante uma parte substancial da sua vida. A matéria inerte do búzio pode pois considerar-se uma variação sobre esses grandes temas que o artista interrogou através das imagens.
O búzio foi mostrado na exposição 50 Anos de Arte Portuguesa, em 2007, com a qual se celebrou meio século de ação mecenática da Fundação Calouste Gulbenkian.
Ana Filipa Candeias