Sem título
No início dos anos de 1970, José Escada realizou diversas experiências em torno de cordas formando aglomerados, meadas ou novelos enrolados em pinhas ou cabeças, mas também por vezes figurando corpos enlaçados num emaranhado denso e fértil. Imagens de simbolismo complexo e rico sob uma aparência pobre, nas quais a figura da serpente (por exemplo, no «Laoconte» que o artista também representou) parece emergir de forma repetida, como na obra que vamos de seguida interpretar.
Deitando mão da mesma economia heráldica que encontramos, por exemplo, nos quadros com monogramas e fechaduras na Coleção Moderna, esta pintura expõe, por outro lado, uma metáfora recorrente em José Escada: a metáfora da vida, energia primordial que anima os seres, figurada em veios serpentiformes, flexíveis e pneumáticos, dotados de respiração própria. A sua organização imbricada sugere o movimento perpétuo de união e interação, dinâmica comum aos organismos vivos, seja à escala microscópica de células ou moléculas, seja à escala de tecidos e órgãos como o cérebro humano. A capacidade humana de pensar é pois aqui simbolizada neste córtex cinzento azulado, com as suas curvas e circunvoluções, matéria primordial e lugar de todas as representações. As suas propriedades fundamentais, condução e excitabilidade, aparecem vertidas em breves anéis de brilho vermelho intenso que reforçam o caráter ondulatório, de fluorescência ativa, dessa matéria. Reiterando a homologia entre cordas e córtex, nós da imaginação e do pensamento, eis que a massa cinzenta – literalmente pintada –, se transfigura em água-viva, medusa ou serpente. Assim, é-nos dado contemplar a outra face da vida do espírito, segundo José Escada. Uma face tormentosa, negativa, em que os fios enrolados sobre si prefiguram a imagem ameaçadora do labirinto. A substância de apática aparência manifesta-se então como armadilha viscosa capaz de submergir o ser. As cordas que Escada teorizou vezes sem conta nem sempre reproduziram uma tensão positiva e ascensional, antes revelando uma matéria pegajosa e dissolvente, cujo produto – ideia ou pensamento –, ainda de acordo com o artista, poderia dar origem à mais sufocante indiferenciação.
Ana Filipa Candeias
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