Do Outro Lado do Espelho

Os espelhos são objetos muito interessantes devido à sua capacidade de nos transportar a outras dimensões, conduzindo-nos por vezes a horizontes de espiritualidade, ilusão ou até de pesadelo.

Os artistas recorrem aos espelhos com diferentes propósitos, ora para revelar ora para disfarçar aspetos das cenas que representam, já que eles oferecem infinitas possibilidades visuais, incluindo a mais óbvia: o reflexo fiel da realidade.

Mas, embora a primeira finalidade do espelho seja efetivamente a representação fiel das aparências, refletindo uma visão coerente do mundo, nem sempre os artistas o utilizaram como tal, preferindo favorecer a ambiguidade e a fragmentação, de acordo com os efeitos pretendidos, que muitas vezes são de ordem filosófica, em detrimento da representação mimética da realidade.

Curadoria: Maria Rosa Figueiredo com a colaboração de Leonor Nazaré

 

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Constituída por 69 obras, número-espelho, a exposição está dividida em cinco núcleos temáticos, precedidos por três figuras introdutórias: uma escultura que funciona como convite à visita, uma pintura que introduz o tema da mostra e um espelho-objeto que proporciona ao visitante ocasião para a si próprio perguntar:

 

«Quem Sou Eu?»: O Espelho Identitário

A interrogação sobre o que somos e quem somos, conduz-nos obrigatoriamente a um olhar no espelho. Porque só há verdade no que somos ou que reinventamos como nosso quando nos colocamos em comparação com o «outro». Neste núcleo estão incluídas obras que representam situações de confronto com o espelho [«Espelho de água», o mito de Narciso, o «estádio do espelho»] tanto por parte dos humanos como de alguns animais.

James Abbott McNeill Whistler, «Sinfonia em branco, n.º 2: A menina vestida de branco [Symphony in White, no 2: The Little White Girl]», 1864. Óleo sobre tela. Londres, Tate Britain: legado de Arthur Studd, 1919. Inv. N03418
George Romney, «Sra. Russell e Filho [Mrs. Russell and Son]», 1786-1787. Óleo sobre tela. Proveniência: Família Russell até 1965; Coleção Roger Seelig
Jorge Varanda. Sem título, 1990. Tinta acrílica sobre contraplacado. Lisboa, Museu Calouste Gulbenkian – Coleção Moderna

 

O Espelho Alegórico

O espelho como suporte de uma tradição alegórica de largo espetro, metáfora de vícios e virtudes, da Vaidade à Prudência, do Amor Profano e da Luxúria, mas também do tempo que passa e que conduz ao envelhecimento e à morte inevitável, tendo sempre a mulher como intérprete. 

Simon Vouet, «Alegoria da Prudência» [Allégorie de la Prudence], c. 1645 Óleo sobre tela. Proveniência: legado de François-Xavier Fabre, 1837 Musée Fabre, Montpellier Méditerranée Métropole, inv. 837.1.98 © Musée Fabre de Montpellier Méditerranée Métropole – Fotografia: Frédéric Jaulmes
Jan Sanders van Hemessen, «Vanitas [Vanité]», c. 1535. Óleo sobre madeira. Lille, Musée des Beaux-Arts. Inv. P 2009
Ana Vieira, «Toucador», 1973. Espelho, madeira algodão, tecido, plástico, rede Lisboa, Museu Calouste Gulbenkian – Coleção Moderna, inv. 83E565

 

A Mulher em Frente ao Espelho: A Projeção do Desejo

O conceito de intimidade deriva de uma construção social que tem sofrido alterações profundas ao longo dos tempos. Enquanto na Idade Média a ideia de intimidade e de «puritanismo» eram conceitos inexistentes, sendo a toilette feminina submetida a um ritual destinado a uma audiência privilegiada, entre os séculos XVI e XVIII adquiriu contornos de uma sexualidade implícita, relacionada mais diretamente com a sedução. O banho, mais que uma questão de higiene, tornou-se fonte de prazer.

No século XIX, com a separação efetuada entre a esfera pública e a privada, a mulher adquiriu um novo sentido de privacidade no seu relacionamento consigo própria e com o «outro», que resultou na prioridade do «parecer» sobre o «ser».

Justus Juncker, «Toilette da manhã [Bei der Morgentoilette]», 1752. Óleo sobre tela. Karlsruhe, Staatliche Kunsthalle, inv. 2506. © bpk / Staatliche Kunsthalle Karlsruhe / Annette Fischer/Heike Kohler
Ambrose McEvoy, «O Brinco», c. 1911. Óleo sobre tela. Londres, Tate Britain: oferta de C.L. Rutherston, 1917. Inv. N03176
Paula Rego, «Preparando-se para o Baile», 2001-2002. Série Jane Eyre. Litografia colorida em três folhas. Prova de artista. Papel. Casa das Histórias Paula Rego / Câmara Municipal de Cascais /Fundação D. Luís I, Cascais. Inv. CHPR G 418/1-3 . Doação da artista Paula Rego à Câmara Municipal de Cascais

 

Espelhos Que Revelam e Espelhos Que Mentem

Os artistas são capazes de tecer uma teia intricada de mentiras dentro dos limites das suas telas. Conseguem facilmente distorcer, apagar e manipular a realidade visível, como modo de obter um cenário específico conducente a uma determinada realidade puramente imaginada.

As anamorfoses, supostamente inventadas por Leonardo da Vinci e que constituíam um divertimento muito popular nos séculos XVIII e XIX são disto um bom exemplo. É relevante a sua presença nesta exposição, uma vez que estabelecem a ligação entre arte e conhecimento científico, criando a ilusão de uma realidade inexistente.

O uso do espelho convexo na pintura, utilizado pelos artistas desde o século XV, possibilita o acesso a realidades muito para além do campo de visão frente ao quadro. São como janelas que nos conduzem para além da pintura e nos fazem descobrir o inacessível, como no caso das pinturas famosas de Jan van Eyck e Quentin Metsys.

Fugindo ao artifício científico e já no domínio da pura imaginação incluímos neste núcleo várias obras inspiradas na Alice de Do Outro lado do Espelho, nomeadamente uma pintura de Eduardo Luiz e fotografias de Cecília Costa e Noé Sendas.

Wladimir Lukianowitsch von Zabotin, «A Menina do Espelho [Mädchen im Spiegel]», 1922-1927 . Óleo sobre tela. Karlsruhe, Staatliche Kunsthalle. Inv. 1506 © bpk / Staatliche Kunsthalle Karlsruhe / Annette Fischer/Heike Kohler
Eduardo Luiz, «A Mão de Alice [La Main d’Alice]», 1983. Óleo sobre tela. Coleção Maria Isabel Alves da Silva
Noé Sendas, «Crystal Girl no. 69», 2012 (Ed. AP1). Impressão a jato de tinta sobre Papel Luster, ed. 2 + 2 AP. Cortesia do artista

 

O Espelho Masculino: Autorretratos e Outras Experiências

O espelho na pintura não é exclusivamente utilizado por representantes do género feminino, embora sejam as mulheres que dele fazem mais uso. Em toda a investigação levada a efeito para esta exposição encontrou-se um único caso de toilette masculina, um homem a fazer a barba. Mas encontrou-se também uma curiosa pintura de um local de toilette masculina (A Casa de Banho de Jacques-Émile Blanche de Maurice Lobre, incluída na exposição), com o ocupante ausente e uma rapariga jovem a abandonar esse espaço de intimidade. Para além da inesperada pintura de Paula Rego, com um homem vestido de saia de xadrez, recriação do Padre Amaro, herói de Eça de Queiroz.

Concluiu-se que a relação Homem-Espelho é feita maioritariamente nos autorretratos, e vários foram os selecionados para esta exposição. O espelho possibilita ao pintor fazer um retrato de si próprio sem recorrer à memória, segundo uma tradição que recua ao século XV, nos primórdios do Renascimento.

Harold Gresley, «O Espelho Convexo [The Convex Mirror]», 1945 . Óleo sobre tela. Derby Museums, inv. DBYMU 2001-20
Richard Hamilton, «Imagem no espelho», 1974. Colotipo sobre Papel Schoeller. Lisboa, Museu Calouste Gulbenkian – Coleção Moderna, Inv. 98GE596. Fotografia: José Manuel Costa Alves
Daniel Blaufuks, «Mão com Espelho», 2010. Da série «O ofício de viver». Fotografia, impressão a jato de tinta. Coleção particular
Atualização em 17 dezembro 2020

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