Vaso de vidro
A peça mais original dos vidros do período mameluco do Museu Gulbenkian é um objecto de uso profano, apesar de as lâmpadas de mesquita constituírem o mais significativo acervo deste sector da colecção. A originalidade deste vaso é evidente, não só pela sua forma – com um perfil cilíndrico alargando-se para o topo, de borda lisa e simples e base convexa –, mas também pela sua dimensão, sendo, com 33,5 centímetros de altura, o maior dos vasos deste tipo conhecidos, apenas comparável aos do Bayerisches Nationalmuseum (Munique), da Freer Gallery of Art (Washington) e do Stätisches Museum (Münchengladbach). Oriundo da China, onde foi adquirido por Georges Eumorfopoulos por volta de 1918, viria a ser leiloado pela Sotheby’s, em Londres, em 1940, altura em que foi adquirido para a colecção.
A sua intrincada e vibrante iconografia inclui um conjunto de representações assimétricas de aves reais e míticas, duplicada em ambos os lados com pequenas variações, incluindo um açor ou milhafre, um pato, um ganso, um papagaio, uma poupa, um abutre ou uma pega, entre os quais se encontra ainda uma fantástica fénix: ave de fogo popularizada no ocidente pela mitologia grega, cuja origem lendária será provavelmente oriental, sendo o seu mito muito popular na China; teria penas brilhantes vermelhas e douradas, reproduzindo a tonalidade e o brilho das chamas, pelas quais era consumida quando morria, renascendo das suas próprias cinzas. Junto ao disco que forma a sua base, em «bolacha», apresenta uma larga cercadura com peixes sobre fundo azul, dentro da qual se agita uma onda em vermelho, verde e ouro. Em redor da borda e da base apresenta ainda uma delicada decoração em filigrana dourada.
A representação das aves em voo desenrola-se a toda a volta do vaso, sem molduras ou divisões, como se fosse um rolo contínuo. A composição é dominada pela fénix e pelo abutre, que parecem sobrevoar as outras aves. Todas as representações são extremamente realistas no que diz respeito à anatomia das diversas espécies retratadas – mantendo inclusivamente uma aproximação às suas proporções relativas –, mas este realismo não se estende à cor vibrante das suas plumagens, em tons de vermelhos, azuis, verdes, amarelos e brancos, cuja homologia com as pedras preciosas é evidente; o brilho destas cores (hoje um pouco esbatido, mas ainda perceptível) ajudaria à criação de um deslumbramento que a cor e a transparência da peça – fazendo com que as representações das aves pareçam quase flutuar no espaço – completariam. Isto apesar de a generalidade das aves não estar representada verdadeiramente em voo – particularmente a poupa, a pega e o papagaio –, com exceção da ave de rapina e dos gansos prestes a colidir. Toda a composição é dominada por uma clara hierarquia, com a fénix e o abutre, maiores, no topo da composição, as aves selvagens no meio, enquanto as aves domésticas aparecem junto à base.
A inspiração para esta elaborada iconografia deverá encontrar-se nos manuscritos científicos ilustrados e de bestiários – mais comuns no mundo islâmico do que no cristão –, entre os quais merece destaque o Kitab Manafi’ al-Hayawan [Livro sobre a Utilidade dos Animais], do qual se conservou uma cópia de origem mameluca, de 1354, na Real Biblioteca do Escorial, compilado por Ibn al-Durayhim al-Mawsili.
Jorge Rodrigues
Conservador do Museu Calouste Gulbenkian
O autor não escreve segundo as normas do acordo ortográfico de 1990.