A conservação (e a montagem) do Centro de Mesa de François-Thomas Germain
A Conservação configura-se como uma das funções basilares de qualquer museu, procurando-se identificar e monitorizar os vários agentes de deterioração que possam induzir uma obra de arte em perda de valor. O principal objetivo da conservação consiste em prolongar ao máximo a vida dos objetos museológicos, interrompendo assim eventuais processos de degradação em curso através da estabilização dos materiais constituintes dos objetos.
No caso particular do Museu Calouste Gulbenkian e da sua coleção de Ourivesaria, e na sequência dos esforços sempre desenvolvidos desde a fundação do Museu, esta tem vindo a ser alvo, desde 2019, de um projeto continuado e sistemático de conservação, incidindo sobretudo em intervenções de limpeza dos objetos que a constituem.
Uma das obras da coleção cuja intervenção de conservação se relevou mais complexa foi o grande Centro de Mesa executado pelo mestre ourives François-Thomas Germain (1726-1791).
Os centros de mesa (surtouts de table) eram das mais importantes peças da mesa de aparato setecentista, apresentando quase sempre um associado uso funcional, podendo integrar luminárias ou outros objetos dos serviços de mesa (saleiros, especieiros).
O Centro de Mesa da Coleção Gulbenkian, composto por uma peça central (para o centro da mesa) e duas laterais (para as cabeceiras da mesa), encontra-se praticamente desprovido de função utilitária, concentrando o seu enfoque na sua intensa dimensão escultórica e plástica.
Representa, na realidade, um verdadeiro tour de force das capacidades artísticas e técnicas de um dos principais ourives parisienses do seu tempo – capacidades e prestígio que não passaram ao lado de algumas das principais cortes e aristocracia europeias, as quais a ele recorreram com encomendas sucessivas, apenas interrompidas com a famosa declaração de bancarrota do ourives em 1765.
A obra em apreço foi encomendada pelo conde Piotr Grigorievitch Chernichev, embaixador russo em Paris, sabendo-se estar já em fase de execução em 1763 (ainda que apenas concluída em 1766, já após a bancarrota do ourives). Uma inscrição existente no reverso da base da peça central indica-nos a data da sua conclusão, bem como o nome e estatuto do mestre que a executou: «FAIT . PAR . F. T. GERMAIN . SCULPr . ORFre . DU . ROY . AUX . GALLERIES . DU . LOUVRE A PARIS 1766» (Feito por François-Thomas Germain, escultor-ourives do Rei nas Galerias do Louvre em Paris 1766).
Quando Calouste Gulbenkian conseguiu adquirir ao Governo Soviético, em 1929 e 1930, um importe conjunto de obras de arte que figurava nas coleções do Museu do Hermitage, em São Petersburgo, este surtout integrava o lote comprado em 1930. Um antigo número de inventário marcado a lacre (vermelho) no reverso da peça («7168») remete precisamente para a passagem desta obra pelas coleções imperiais russas e pelo célebre Museu Hermitage.
No que diz respeito à intervenção de limpeza desta complexa obra, e focando em particular no caso da peça central, surgiu desde logo a necessidade da desmontagem dos vários elementos que a constituem. Só assim se conseguiria realizar uma correta e integral limpeza de cada peça e das áreas de junção entre os diversos elementos ou componentes. Curiosamente, observou-se que algumas peças em vulto perfeito foram integral e delicadamente decoradas (através de cinzelagem e gravação), embora estivessem parcialmente tapadas por outros elementos compositivos ou decorativos.
O caso da aljava com setas exemplifica de forma eloquente esta constatação. Até os aspetos aparentemente ocultos mereceram atenção por parte do ourives e dos seus colaboradores!
A desmontagem do Centro de Mesa permitiu separá-lo em 28 peças autónomas, incluindo peças maiores e mais estruturais, bem como pequenos elementos decorativos.
A maioria destes pequenos componentes autónomos apresenta, no reverso, marcas incisas em numeração romana que facilitam a correspondência com o local de fixação aquando da montagem (uma vez que apresenta o mesmo código), método frequente em obras compósitas similares, mas também em objetos de menor envergadura e complexidade (como se verificou noutras obras da Coleção Gulbenkian).
Para além dos evidentes benefícios na preservação das coleções, não deixa de ser igualmente fascinante constatar os ganhos no conhecimento potenciados através destes projetos de conservação ao nível do conhecimento das próprias obras de arte e das técnicas de produção artística utilizadas na sua execução. De facto, a conservação e o conhecimento são inseparáveis aliados naquilo que é o trilho do desenvolvimento e concretização da missão de qualquer museu.
André das Neves Afonso
Conservador do Museu Calouste Gulbenkian
Mafalda Fernandes
Conservadora-restauradora
Museu Calouste Gulbenkian
Rui Xavier
Conservador e Responsável de Conservação Preventiva do Museu Calouste Gulbenkian