O Poder da Palavra II / Da Índia à Europa, a viagem das fábulas de Bidpay

06 jul 2020

Uma das séries de fábulas mais copiadas, traduzidas e publicadas em todo o mundo tem as suas raízes na coletânea em sânscrito intitulada Panchatantra, ou «Cinco Tratados», reunida entre os séculos II e III d. C. Diz-se que a versão original, atualmente desaparecida, foi trazida para a Pérsia por Borzuya, o médico do rei sassânida Khosrow I (r. 531-579), e traduzida para persa médio ou pahlavi. Esta versão, igualmente desaparecida, foi passada para árabe por Ibn al-Muqaffa (c. 756-759) e intitulada Kalila e Dimna, os nomes dos dois chacais que protagonizam as histórias.

Na Idade Média, a versão árabe foi traduzida para siríaco, hebraico, latim e persa moderno e, posteriormente, para quase todas as línguas do mundo. O famoso escritor francês Jean de La Fontaine (1621-1695) admitiu dever muito a esta obra oriental ao referir como fonte de inspiração a tradução francesa de Anvâr-e Soheyli, intitulada Livre des Lumières e editada por Gilbert Gaulman em 1644.

Desde o momento da sua conceção, os textos incluídos em Panchatantra destinavam-se a servir de instrumento educacional para os membros da elite dominante, um género literário que ficou conhecido como «Espelho de Príncipes». Em cada história, os protagonistas − animais representando características humanas, da nobreza de carácter às fraquezas do espírito − oferecem lições de prudência e moral ao leitor. Os seus temas variam entre a traição, satisfação e a moralidade. Algumas destas histórias continuam a ressoar na sociedade moderna, enquanto outras são alvo de críticas por estarem desatualizadas, facto explorado pelo grupo de trabalho «O Poder da Palavra».

Esta pequena exposição foca-se na descoberta de um manuscrito não encadernado na coleção de Calouste Gulbenkian (LA170), cujas ilustrações sobreviveram miraculosamente às cheias de 1967 em Lisboa. Trata-se de uma cópia de Anvâr-e Sohayli [Luzes de Canopus], uma tradução para persa de Kalila e Dimna realizada por Va’ez Kashefi no final do século XV na corte do príncipe timúrida de Herat, o sultão Husayn Bayqara (r. 1469-1470; 1470-1506). O título deriva do nome do comandante supremo do sultão, Amir Sheikh Ahmad Sohayli.

O manuscrito aqui apresentado foi copiado e ilustrado no Irão, em 1842, durante o reinado do terceiro monarca Qajar, Muhammad Shah (r. 1834-1848). Porém, as suas requintadas ilustrações são bastante semelhantes àquelas realizadas durante o reinado de seu pai, Fath ‘Ali Shah (r. 1797-1834), que podem ser vistas, por exemplo, no manuscrito Shahanshahnama que este encomendou em 1810 (desmembrado e atualmente disperso pela British Library, pelo Louvre e por outras coleções públicas e particulares).

Fath ‘Ali Shah encontra-se inclusivamente retratado nas imagens que apresentamos, surgindo como monarca real. Assim, o manuscrito poderá ser uma cópia de uma versão anterior, ainda por identificar, igualmente produzida para o rei. A edição da Coleção Gulbenkian poderá ter sido encomendada por um dos seus filhos, possivelmente representado como o jovem príncipe nas fábulas, ou ainda ser uma versão executada para um mercado comercial mais alargado que ainda tinha em alta estima o recentemente falecido xá.

 

Anvâr-e Soheyli

No texto introdutório, o rei Humayun-fâl, ou «Feliz Fortuna», parte numa caçada com o seu vizir, Khujasta-ra’i, ou «Auspicioso Julgamento». O vizir diz ao rei que, para ser magnânimo, deve receber instruções dos sábios, à semelhança do fictício rei indiano Dabishlim, que foi educado pelo brâmane Bidpay. Esta história serve de enquadramento ao livro, que de seguida apresenta uma série de conversas entre Dabishlim e Bidpay, nas quais o brâmane educa o monarca através de histórias morais.

Aqui podemos ver os dois primeiros episódios, nos quais a figura central pode ser facilmente identificada pela barba longa e pelas suas vestes como Fath ‘Ali Shah; estas imagens servem de espelho direto do príncipe, representando-o como o protagonista do livro. Curiosamente, o rosto de Bidpay parece ter sido intencionalmente apagado: é possível que a figura retratada fosse uma personalidade política contemporânea caída em desgraça ou, em alternativa, que a figura do sábio tenha sido interpretada como uma espécie de santo e eliminada por motivos religiosos. O fundo das imagens revela uma mistura de tradições artísticas: à esquerda, a montanha é composta por representações de rochedos ondulados de origem chinesa que foram introduzidos na pintura persa no século XIV; vemos também sombreados e perspetiva do tipo europeu aplicados no céu e na idílica paisagem rural.

O rei Humayun-fâl parte numa caçada. Introdução (fol. 6r)
O rei Dabishlim encontra-se com o sábio Bidpay. Introdução (fol. 11v)

Kalila e Dimna

Um touro em fuga, Shanzabah, chega a um verdejante prado, junto a uma floresta. O poderoso rei leão assusta-se com os mugidos do touro e esconde-se. Dois dos seus cortesãos − os chacais Kalila e Dimna − preocupam-se com a perspetiva de poderem vir a passar fome, uma vez que o rei, paralisado de medo, recusa-se a caçar. Dimna decide apresentar o touro ao leão. Para seu grande desagrado, Shanzabah torna-se no confidente mais próximo do leão e seu protegido. Então, Dimna convence o leão de que o touro está a conspirar contra ele, incitando-o a matá-lo.

O touro Shanzabah é protegido pelo rei leão e torna-se seu conselheiro para grande desagrado do chacal Dimna. Capítulo 1 (fol. 35r)
A estratégia de difamação de Dimna resulta na morte de Shanzabah, provocada pelo leão. Capítulo 1 (fol. 56v)

Traição

Um homem santo compra um carneiro para realizar um sacrifício (parte inferior da imagem). Uma quadrilha de ladrões observa-o e arquiteta um plano para roubar o animal. Um deles pergunta ao homem porque se deixa acompanhar por um «cão sujo», um outro se vai caçar com o seu «cão de caça», outros discutem sobre a raça do suposto cão… O pobre homem protesta, dizendo-lhes que se trata de um carneiro, mas os ladrões são tão convincentes que este acaba por lhes dar o «cão», regressando ao mercado para tentar recuperar o seu dinheiro.

O homem santo e os ladrões. Capítulo 4, história 7 (fol. 103r)

A jovem esposa de um mercador e um pintor, seu vizinho, apaixonam-se. Para se protegerem do falatório, planeiam que o pintor visite a casa da amada disfarçado, envergando uma capa de mulher (preta e branca). Entretanto, o escravo do pintor, que ouve tudo, tapa-se com a capa e vai ao encontro da mulher. Esta, impaciente por consumar o ato com o seu amante, nem reconhece o intruso. Pouco depois, o pintor (barbudo) volta a casa e disfarça-se com o mesmo manto para ir ver a mulher. Esta surpreende-se com o seu regresso em tão curto espaço de tempo (pode ser visto aqui). Assim, o pintor descobre o ardil e castiga o seu escravo e a mulher impaciente não volta a ver o seu amante.

A mulher do mercador, o amante e o escravo falaz. Capítulo 2, história 7 (fol. 72v)

A jovem esposa de um agricultor procura convencer o seu velho marido a abandonar a quinta miserável onde vivem e a ir para uma grande cidade. Quando o agricultor partilha o medo que sente acerca da libertinagem que lá poderão encontrar, a jovem jura-lhe fidelidade. A caminho de Bagdade, enquanto o marido dorme uma sesta, um belo príncipe aproxima-se e demonstra interesse na mulher, que acede imediatamente a abandonar o marido (nesta imagem, vemo-la a fugir montada no cavalo do príncipe). Depois de uma curta distância, o casal decide descansar. Um leão ataca-os e o príncipe foge rapidamente, deixando para trás a mulher, que é devorada pelo animal.

O castigo da mulher do agricultor. Capítulo 7, história 2 (fol. 125r)

Satisfação

O gato de uma mulher pobre (preto e branco) conhece um gato gordo e bem alimentado (branco) que se gaba de comer banquetes à mesa do sultão e se dispõe a levá-lo até lá. Infelizmente, na véspera, o gato gordo fizera tamanha bagunça com a comida que o sultão ordenara aos seus arqueiros que o emboscassem. O gato da mulher pobre, desprevenido, acaba por ser vítima das suas setas. 

O gato guloso é morto pelos arqueiros do sultão. Introdução, história 3 (fol. 19r)

Uma raposa esfomeada encontra um pedaço de pele de um animal que serviu de refeição a um grande predador. Enquanto leva a pele para a sua toca, a raposa encontra um grupo de galinhas vigiadas de perto por um homem e larga a pele para apanhar uma das aves. O homem dá-lhe uma tareia e um milhafre (na imagem representado por uma pega) acaba por lhe roubar a pele rejeitada.

A raposa, as galinhas e o milhafre. Capítulo 2, história 2 (fol. 62v)

Um macaco curioso observa um carpinteiro a serrar um tronco usando duas cunhas para o ajudar no processo. Quando o homem faz uma pausa, o animal ocupa o seu lugar, pensando que a tarefa é simples. Porém, quando retira uma das cunhas, fica com os órgãos genitais presos na fenda do tronco e, quando o carpinteiro regressa, é duramente castigado.

O macaco néscio é castigado pelo carpinteiro. Capítulo 1, história 5 (fol. 29r)

Unidade

Um corvo observa um passarinheiro que arma uma rede para apanhar pássaros e se esconde. Um bando de pombos é apanhado. Enquanto procuram desesperadamente libertar-se, o rei rola diz-lhes que levantem voo juntos, todos ao mesmo tempo. Ao fazê-lo, os pombos conseguem elevar a rede no ar, como se vê nesta imagem, e fogem para uma aldeia próxima onde um rato amigável os liberta, roendo um buraco na rede. O rei rola, epítome de um monarca justo, insiste em ser o último a ser salvo, acedendo apenas em sair depois de todos os seus súbditos terem sido libertados.

Pombos escapam juntos à rede de um passarinheiro. Capítulo 3, história 1 (fol. 81r)

Ingratidão

Um cameleiro avista uma cobra encurralada num fogo e salva-a com um saco preso na ponta da sua lança (primeira imagem, ligeiramente danificada). Logo que se vê a salvo, a cobra anuncia que só se afastará depois de morder o cameleiro e o seu animal. Segue-se uma discussão: estará a cobra a ser injusta ou se terá o homem sido insensato ao mostrar clemência à cobra? Os dois decidem procurar outras opiniões. Uma fêmea de búfalo concorda que no reino dos homens a resposta ao bem é o mal: «durante anos produzi bom leite e vitelos para o meu dono, mas agora que já não dou leite vai levar-me para o carniceiro». Uma árvore partilha desta mesma opinião: «proporciono sombra aos viajantes para que repousem no calor do deserto, mas eles serram-me os ramos». Uma raposa que por ali passa, ao ouvir estas histórias, afirma que apenas se pronunciará quando conseguir entender como é que uma cobra tão grande coube num saco tão pequeno (segunda imagem). Para o demonstrar, a cobra desliza para dentro do saco e  a raposa instrui o cameleiro a esmagá-lo, matando a cobra.

O cameleiro salva a cobra ingrata. Capítulo 3, história 3 (fol. 86r)
A raposa engana a cobra ingrata. Capítulo 3, história 3 (fol. 87v)

Conhecimento

Um leão feroz vive num prado, onde está sempre a caçar, não dando descanso aos outros animais. Um dia, os animais fazem uma proposta ao rei: para que possam evitar a angústia e ansiedade da caçada, todos os dias um animal irá apresentar-se voluntariamente nas cozinhas reais. Este plano é prontamente aceite pelo leão. Diariamente, os animais sorteiam a vítima. Um dia, a malfadada mártir é a lebre, que decide atrasar a sua chegada à toca do leão. Zangado e esfomeado, o leão pergunta-lhe porque demorou tanto e o animal conta-lhe que nesse dia duas lebres lhe tinham sido enviadas, mas que, quando vinham a caminho, um outro leão apanhara a primeira e escondera-se num poço. O rei, furioso, acompanha a lebre até ao local, para matar o seu audaz adversário. A lebre diz ao leão para se debruçar sobre o muro do poço (aqui representado por um ribeiro). O rei segue o seu conselho e vê um feroz leão com uma lebre branca nas garras, atirando-se de imediato para o apanhar. Assim, todos os animais foram libertados pela esperteza da lebre.

O leão e a lebre. Capítulo 1, história 14 (fol. 43v)

Um pobre caçador passa todo o dia a caçar e só apanha três pássaros. Enquanto procura mais aves, depara-se com uma discussão acalorada entre dois estudantes. Pede-lhes que façam silêncio, mas estes só acedem se ele lhes oferecer dois pássaros, ao que o pobre caçador acede relutantemente. Ao serem questionados relativamente à razão da discussão, os estudantes respondem: «hermafroditas e como as leis sucessórias se deveriam aplicar aos mesmos». O pobre caçador, que agora apenas tem um pássaro para alimentar toda a sua família, decide pescar. Quer o destino que nas suas redes caia um peixe maravilhoso, de cores vivas, que o caçador decide oferecer ao sultão. O sultão fica de tal modo satisfeito com a oferta que manda o seu vizir entregar mil dinares ao caçador (na imagem). O vizir sussurra ao ouvido do sultão que o valor é altamente desproporcional e aconselha o governante, que expressara em voz alta as suas intenções, a ludibriar o caçador. Propõe-lhe então que pergunte ao caçador se o peixe é macho ou fêmea e que, independentemente da resposta, lhe peça um outro do sexo oposto para receber a recompensa. Quando o sultão o questiona, o velho caçador pressente a artimanha e, recordando a discussão entre os estudantes, explica que o peixe é hermafrodita! O rei, impressionado com a inteligente resposta, oferece ao caçador o dobro da recompensa.

O caçador e o rei. Capítulo 11, história 4 (fol. 144v)

Humanidade e Moralidade

Um anjo (em cima, à direita) aparece ao rei Salomão com uma taça da água da vida eterna, oferecendo-lhe uma escolha: bebê-la e tornar-se imortal, ou não o fazer. O sábio rei aconselha-se junto dos seus cortesãos, humanos, demónios e animais. Todos concordam que o seu rei deverá viver para sempre; apenas a garça se encontra ausente. Quando é convocada para dar a sua opinião, a garça aproxima-se do rei (aqui representado) e pergunta-lhe se este se dispõe a partilhar a poção com os outros. O rei diz-lhe que a bebida se destina apenas a ele, ao que a garça responde que nunca beberia a poção para viver para sempre se isso significasse assistir à morte de todos os seus amigos e parentes. Salomão recusa beber a poção e manda o anjo embora.

O tema do rei em busca da imortalidade data de, pelo menos, o século III a. C., com a história épica do mítico rei sumério Gilgamesh. O mito grego de Orfeu é semelhante. Ferdowsi (f. c. 1020), famoso autor de Shahnama [O Livro dos Reis da Pérsia], relata igualmente uma história parecida protagonizada por Iskandar, versão mítica de Alexandre o Grande.

Na pintura acima, as feições de Fath ‘Ali Shah’s podem reconhecer-se na figura do rei Salomão, o poderoso rei, modelo de sabedoria e capaz de falar com os pássaros e domar os ventos e os génios (jinns) (Alcorão XXVII:16; XXXIV:12-13). A poupa é uma ave frequentemente representada junto a Salomão (neste caso, a seus pés). Diz-se que levava mensagens de Salomão à rainha de Sabá (XXVII:20-28). Esta ave é também a figura central da obra-prima persa do século XII «A Conferência dos Pássaros», da autoria do místico do século XII Farid al-Din Attar, na qual a poupa conduz os pássaros do mundo numa viagem em busca do seu rei, numa metafórica procura de Deus.

O rei Salomão e a garça. Capítulo 12, história 2 (fol. 147v)
O rei Salomão e a garça (pormenor mostrando a garça sentada no poleiro real). Capítulo 12, história 2 (fol. 147v)

 

Farhad Kazemi
Curador convidado, Institut national du patrimoine, Paris

Coordenação de Jessica Hallett (curadora) e Diana Pereira (Serviço Educativo)
Museu Calouste Gulbenkian

Colaboradores: Fabrizio Boscaglia, Joana Simões Piedade, João Teles e Cunha, Leila Namazi, Maryam Loutfi, Maryam Nasirpour, Rahman Haghighi, Raquel Feliciano, Ricardo Mendes, Omid Bahrami, Samaneh Sharif, Sara Domingos, Shahd Wadi.


O Poder da Palavra é um projeto do Museu Calouste Gulbenkian que reúne um grupo abrangente em torno do estudo da Arte do Livro e de outros objetos da coleção do Médio Oriente, membros da comunidade local, colaboradores da equipa de curadores e do Serviço Educativo e investigadores. O seu objetivo é potenciar a experiência destas obras conduzindo os participantes a uma pesquisa colaborativa e à criação de novas e vibrantes interpretações contemporâneas, numa afirmação do valor da cultura imaterial. 

Neste grupo de trabalho, os participantes tiveram um papel crucial na interpretação de textos e de imagens de diferentes pontos de vista culturais, discutindo a relevância das histórias e dos arquétipos tradicionais na atualidade. Na galeria é apresentado um painel com aforismos interculturais e questões contemporâneas que surgiram durante este processo.

O projeto foi partilhado com o público no Dia Internacional dos Museus com a conferência «Quantas vozes tem um museu?» e a história para famílias «O leão e a lebre».

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