O Poder da Palavra II / Da Índia à Europa, a viagem das fábulas de Bidpay
Uma das séries de fábulas mais copiadas, traduzidas e publicadas em todo o mundo tem as suas raízes na coletânea em sânscrito intitulada Panchatantra, ou «Cinco Tratados», reunida entre os séculos II e III d. C. Diz-se que a versão original, atualmente desaparecida, foi trazida para a Pérsia por Borzuya, o médico do rei sassânida Khosrow I (r. 531-579), e traduzida para persa médio ou pahlavi. Esta versão, igualmente desaparecida, foi passada para árabe por Ibn al-Muqaffa (c. 756-759) e intitulada Kalila e Dimna, os nomes dos dois chacais que protagonizam as histórias.
Na Idade Média, a versão árabe foi traduzida para siríaco, hebraico, latim e persa moderno e, posteriormente, para quase todas as línguas do mundo. O famoso escritor francês Jean de La Fontaine (1621-1695) admitiu dever muito a esta obra oriental ao referir como fonte de inspiração a tradução francesa de Anvâr-e Soheyli, intitulada Livre des Lumières e editada por Gilbert Gaulman em 1644.
Desde o momento da sua conceção, os textos incluídos em Panchatantra destinavam-se a servir de instrumento educacional para os membros da elite dominante, um género literário que ficou conhecido como «Espelho de Príncipes». Em cada história, os protagonistas − animais representando características humanas, da nobreza de carácter às fraquezas do espírito − oferecem lições de prudência e moral ao leitor. Os seus temas variam entre a traição, satisfação e a moralidade. Algumas destas histórias continuam a ressoar na sociedade moderna, enquanto outras são alvo de críticas por estarem desatualizadas, facto explorado pelo grupo de trabalho «O Poder da Palavra».
Esta pequena exposição foca-se na descoberta de um manuscrito não encadernado na coleção de Calouste Gulbenkian (LA170), cujas ilustrações sobreviveram miraculosamente às cheias de 1967 em Lisboa. Trata-se de uma cópia de Anvâr-e Sohayli [Luzes de Canopus], uma tradução para persa de Kalila e Dimna realizada por Va’ez Kashefi no final do século XV na corte do príncipe timúrida de Herat, o sultão Husayn Bayqara (r. 1469-1470; 1470-1506). O título deriva do nome do comandante supremo do sultão, Amir Sheikh Ahmad Sohayli.
O manuscrito aqui apresentado foi copiado e ilustrado no Irão, em 1842, durante o reinado do terceiro monarca Qajar, Muhammad Shah (r. 1834-1848). Porém, as suas requintadas ilustrações são bastante semelhantes àquelas realizadas durante o reinado de seu pai, Fath ‘Ali Shah (r. 1797-1834), que podem ser vistas, por exemplo, no manuscrito Shahanshahnama que este encomendou em 1810 (desmembrado e atualmente disperso pela British Library, pelo Louvre e por outras coleções públicas e particulares).
Fath ‘Ali Shah encontra-se inclusivamente retratado nas imagens que apresentamos, surgindo como monarca real. Assim, o manuscrito poderá ser uma cópia de uma versão anterior, ainda por identificar, igualmente produzida para o rei. A edição da Coleção Gulbenkian poderá ter sido encomendada por um dos seus filhos, possivelmente representado como o jovem príncipe nas fábulas, ou ainda ser uma versão executada para um mercado comercial mais alargado que ainda tinha em alta estima o recentemente falecido xá.
Anvâr-e Soheyli
No texto introdutório, o rei Humayun-fâl, ou «Feliz Fortuna», parte numa caçada com o seu vizir, Khujasta-ra’i, ou «Auspicioso Julgamento». O vizir diz ao rei que, para ser magnânimo, deve receber instruções dos sábios, à semelhança do fictício rei indiano Dabishlim, que foi educado pelo brâmane Bidpay. Esta história serve de enquadramento ao livro, que de seguida apresenta uma série de conversas entre Dabishlim e Bidpay, nas quais o brâmane educa o monarca através de histórias morais.
Aqui podemos ver os dois primeiros episódios, nos quais a figura central pode ser facilmente identificada pela barba longa e pelas suas vestes como Fath ‘Ali Shah; estas imagens servem de espelho direto do príncipe, representando-o como o protagonista do livro. Curiosamente, o rosto de Bidpay parece ter sido intencionalmente apagado: é possível que a figura retratada fosse uma personalidade política contemporânea caída em desgraça ou, em alternativa, que a figura do sábio tenha sido interpretada como uma espécie de santo e eliminada por motivos religiosos. O fundo das imagens revela uma mistura de tradições artísticas: à esquerda, a montanha é composta por representações de rochedos ondulados de origem chinesa que foram introduzidos na pintura persa no século XIV; vemos também sombreados e perspetiva do tipo europeu aplicados no céu e na idílica paisagem rural.
Kalila e Dimna
Um touro em fuga, Shanzabah, chega a um verdejante prado, junto a uma floresta. O poderoso rei leão assusta-se com os mugidos do touro e esconde-se. Dois dos seus cortesãos − os chacais Kalila e Dimna − preocupam-se com a perspetiva de poderem vir a passar fome, uma vez que o rei, paralisado de medo, recusa-se a caçar. Dimna decide apresentar o touro ao leão. Para seu grande desagrado, Shanzabah torna-se no confidente mais próximo do leão e seu protegido. Então, Dimna convence o leão de que o touro está a conspirar contra ele, incitando-o a matá-lo.
Traição
Um homem santo compra um carneiro para realizar um sacrifício (parte inferior da imagem). Uma quadrilha de ladrões observa-o e arquiteta um plano para roubar o animal. Um deles pergunta ao homem porque se deixa acompanhar por um «cão sujo», um outro se vai caçar com o seu «cão de caça», outros discutem sobre a raça do suposto cão… O pobre homem protesta, dizendo-lhes que se trata de um carneiro, mas os ladrões são tão convincentes que este acaba por lhes dar o «cão», regressando ao mercado para tentar recuperar o seu dinheiro.
A jovem esposa de um mercador e um pintor, seu vizinho, apaixonam-se. Para se protegerem do falatório, planeiam que o pintor visite a casa da amada disfarçado, envergando uma capa de mulher (preta e branca). Entretanto, o escravo do pintor, que ouve tudo, tapa-se com a capa e vai ao encontro da mulher. Esta, impaciente por consumar o ato com o seu amante, nem reconhece o intruso. Pouco depois, o pintor (barbudo) volta a casa e disfarça-se com o mesmo manto para ir ver a mulher. Esta surpreende-se com o seu regresso em tão curto espaço de tempo (pode ser visto aqui). Assim, o pintor descobre o ardil e castiga o seu escravo e a mulher impaciente não volta a ver o seu amante.
A jovem esposa de um agricultor procura convencer o seu velho marido a abandonar a quinta miserável onde vivem e a ir para uma grande cidade. Quando o agricultor partilha o medo que sente acerca da libertinagem que lá poderão encontrar, a jovem jura-lhe fidelidade. A caminho de Bagdade, enquanto o marido dorme uma sesta, um belo príncipe aproxima-se e demonstra interesse na mulher, que acede imediatamente a abandonar o marido (nesta imagem, vemo-la a fugir montada no cavalo do príncipe). Depois de uma curta distância, o casal decide descansar. Um leão ataca-os e o príncipe foge rapidamente, deixando para trás a mulher, que é devorada pelo animal.
Satisfação
O gato de uma mulher pobre (preto e branco) conhece um gato gordo e bem alimentado (branco) que se gaba de comer banquetes à mesa do sultão e se dispõe a levá-lo até lá. Infelizmente, na véspera, o gato gordo fizera tamanha bagunça com a comida que o sultão ordenara aos seus arqueiros que o emboscassem. O gato da mulher pobre, desprevenido, acaba por ser vítima das suas setas.
Uma raposa esfomeada encontra um pedaço de pele de um animal que serviu de refeição a um grande predador. Enquanto leva a pele para a sua toca, a raposa encontra um grupo de galinhas vigiadas de perto por um homem e larga a pele para apanhar uma das aves. O homem dá-lhe uma tareia e um milhafre (na imagem representado por uma pega) acaba por lhe roubar a pele rejeitada.
Um macaco curioso observa um carpinteiro a serrar um tronco usando duas cunhas para o ajudar no processo. Quando o homem faz uma pausa, o animal ocupa o seu lugar, pensando que a tarefa é simples. Porém, quando retira uma das cunhas, fica com os órgãos genitais presos na fenda do tronco e, quando o carpinteiro regressa, é duramente castigado.
Unidade
Um corvo observa um passarinheiro que arma uma rede para apanhar pássaros e se esconde. Um bando de pombos é apanhado. Enquanto procuram desesperadamente libertar-se, o rei rola diz-lhes que levantem voo juntos, todos ao mesmo tempo. Ao fazê-lo, os pombos conseguem elevar a rede no ar, como se vê nesta imagem, e fogem para uma aldeia próxima onde um rato amigável os liberta, roendo um buraco na rede. O rei rola, epítome de um monarca justo, insiste em ser o último a ser salvo, acedendo apenas em sair depois de todos os seus súbditos terem sido libertados.
Ingratidão
Um cameleiro avista uma cobra encurralada num fogo e salva-a com um saco preso na ponta da sua lança (primeira imagem, ligeiramente danificada). Logo que se vê a salvo, a cobra anuncia que só se afastará depois de morder o cameleiro e o seu animal. Segue-se uma discussão: estará a cobra a ser injusta ou se terá o homem sido insensato ao mostrar clemência à cobra? Os dois decidem procurar outras opiniões. Uma fêmea de búfalo concorda que no reino dos homens a resposta ao bem é o mal: «durante anos produzi bom leite e vitelos para o meu dono, mas agora que já não dou leite vai levar-me para o carniceiro». Uma árvore partilha desta mesma opinião: «proporciono sombra aos viajantes para que repousem no calor do deserto, mas eles serram-me os ramos». Uma raposa que por ali passa, ao ouvir estas histórias, afirma que apenas se pronunciará quando conseguir entender como é que uma cobra tão grande coube num saco tão pequeno (segunda imagem). Para o demonstrar, a cobra desliza para dentro do saco e a raposa instrui o cameleiro a esmagá-lo, matando a cobra.
Conhecimento
Um leão feroz vive num prado, onde está sempre a caçar, não dando descanso aos outros animais. Um dia, os animais fazem uma proposta ao rei: para que possam evitar a angústia e ansiedade da caçada, todos os dias um animal irá apresentar-se voluntariamente nas cozinhas reais. Este plano é prontamente aceite pelo leão. Diariamente, os animais sorteiam a vítima. Um dia, a malfadada mártir é a lebre, que decide atrasar a sua chegada à toca do leão. Zangado e esfomeado, o leão pergunta-lhe porque demorou tanto e o animal conta-lhe que nesse dia duas lebres lhe tinham sido enviadas, mas que, quando vinham a caminho, um outro leão apanhara a primeira e escondera-se num poço. O rei, furioso, acompanha a lebre até ao local, para matar o seu audaz adversário. A lebre diz ao leão para se debruçar sobre o muro do poço (aqui representado por um ribeiro). O rei segue o seu conselho e vê um feroz leão com uma lebre branca nas garras, atirando-se de imediato para o apanhar. Assim, todos os animais foram libertados pela esperteza da lebre.
Um pobre caçador passa todo o dia a caçar e só apanha três pássaros. Enquanto procura mais aves, depara-se com uma discussão acalorada entre dois estudantes. Pede-lhes que façam silêncio, mas estes só acedem se ele lhes oferecer dois pássaros, ao que o pobre caçador acede relutantemente. Ao serem questionados relativamente à razão da discussão, os estudantes respondem: «hermafroditas e como as leis sucessórias se deveriam aplicar aos mesmos». O pobre caçador, que agora apenas tem um pássaro para alimentar toda a sua família, decide pescar. Quer o destino que nas suas redes caia um peixe maravilhoso, de cores vivas, que o caçador decide oferecer ao sultão. O sultão fica de tal modo satisfeito com a oferta que manda o seu vizir entregar mil dinares ao caçador (na imagem). O vizir sussurra ao ouvido do sultão que o valor é altamente desproporcional e aconselha o governante, que expressara em voz alta as suas intenções, a ludibriar o caçador. Propõe-lhe então que pergunte ao caçador se o peixe é macho ou fêmea e que, independentemente da resposta, lhe peça um outro do sexo oposto para receber a recompensa. Quando o sultão o questiona, o velho caçador pressente a artimanha e, recordando a discussão entre os estudantes, explica que o peixe é hermafrodita! O rei, impressionado com a inteligente resposta, oferece ao caçador o dobro da recompensa.
Humanidade e Moralidade
Um anjo (em cima, à direita) aparece ao rei Salomão com uma taça da água da vida eterna, oferecendo-lhe uma escolha: bebê-la e tornar-se imortal, ou não o fazer. O sábio rei aconselha-se junto dos seus cortesãos, humanos, demónios e animais. Todos concordam que o seu rei deverá viver para sempre; apenas a garça se encontra ausente. Quando é convocada para dar a sua opinião, a garça aproxima-se do rei (aqui representado) e pergunta-lhe se este se dispõe a partilhar a poção com os outros. O rei diz-lhe que a bebida se destina apenas a ele, ao que a garça responde que nunca beberia a poção para viver para sempre se isso significasse assistir à morte de todos os seus amigos e parentes. Salomão recusa beber a poção e manda o anjo embora.
O tema do rei em busca da imortalidade data de, pelo menos, o século III a. C., com a história épica do mítico rei sumério Gilgamesh. O mito grego de Orfeu é semelhante. Ferdowsi (f. c. 1020), famoso autor de Shahnama [O Livro dos Reis da Pérsia], relata igualmente uma história parecida protagonizada por Iskandar, versão mítica de Alexandre o Grande.
Na pintura acima, as feições de Fath ‘Ali Shah’s podem reconhecer-se na figura do rei Salomão, o poderoso rei, modelo de sabedoria e capaz de falar com os pássaros e domar os ventos e os génios (jinns) (Alcorão XXVII:16; XXXIV:12-13). A poupa é uma ave frequentemente representada junto a Salomão (neste caso, a seus pés). Diz-se que levava mensagens de Salomão à rainha de Sabá (XXVII:20-28). Esta ave é também a figura central da obra-prima persa do século XII «A Conferência dos Pássaros», da autoria do místico do século XII Farid al-Din Attar, na qual a poupa conduz os pássaros do mundo numa viagem em busca do seu rei, numa metafórica procura de Deus.
Farhad Kazemi
Curador convidado, Institut national du patrimoine, Paris
Coordenação de Jessica Hallett (curadora) e Diana Pereira (Serviço Educativo)
Museu Calouste Gulbenkian
Colaboradores: Fabrizio Boscaglia, Joana Simões Piedade, João Teles e Cunha, Leila Namazi, Maryam Loutfi, Maryam Nasirpour, Rahman Haghighi, Raquel Feliciano, Ricardo Mendes, Omid Bahrami, Samaneh Sharif, Sara Domingos, Shahd Wadi.
O Poder da Palavra é um projeto do Museu Calouste Gulbenkian que reúne um grupo abrangente em torno do estudo da Arte do Livro e de outros objetos da coleção do Médio Oriente, membros da comunidade local, colaboradores da equipa de curadores e do Serviço Educativo e investigadores. O seu objetivo é potenciar a experiência destas obras conduzindo os participantes a uma pesquisa colaborativa e à criação de novas e vibrantes interpretações contemporâneas, numa afirmação do valor da cultura imaterial.
Neste grupo de trabalho, os participantes tiveram um papel crucial na interpretação de textos e de imagens de diferentes pontos de vista culturais, discutindo a relevância das histórias e dos arquétipos tradicionais na atualidade. Na galeria é apresentado um painel com aforismos interculturais e questões contemporâneas que surgiram durante este processo.
O projeto foi partilhado com o público no Dia Internacional dos Museus com a conferência «Quantas vozes tem um museu?» e a história para famílias «O leão e a lebre».