À Conversa com António Ole

(Excertos da entrevista publicada no catálogo da exposição)
Por: Isabel Carlos

Isabel Carlos (IC): Talvez começarmos pelo título da exposição. São três cidades, que são a tua geografia de algum modo.
António Ole (AO): Sim, exato. Este triângulo: Luanda, Los Angeles, Lisboa.

 

IC: E a sensação que eu tenho, e me dirás se estou correta ou não, é que até à tua ida para Los Angeles, tu estavas sobretudo a olhar e a dialogar com a arte europeia, a Pop Art, o Surrealismo. E em Los Angeles, parece-me, olhando cronologicamente para as tuas obras, de repente encontras a tua africanidade.
AO: É verdade. Isso é correto!

 

IC: E porquê Los Angeles?
AO: Eu comecei muito cedo, por razões familiares mas também por causa do meu professor de desenho no liceu, o Eduardo Zinc, um apaixonado pelo Cubismo. Com dezasseis anos estava muito influenciado pelo Picasso e tentava repetir os cubistas. Quando chegou o 25 de Abril de 1974, tive a perceção de que deveria tentar uma paragem em relação à pintura e àquilo que fazia até então. Embora tenha feito uma infinidade de capas e ilustrações para livros de autores angolanos.

 

IC: Uma das coisas que me parece óbvia na tua obra é como nunca te prendeste, nem a uma linguagem, nem a um suporte. Ou seja, tu experimentaste todos os suportes, navegaste por todas as linguagens!
AO: Isso também é um pouco motivado pela minha não ida à Escola de Belas-Artes. Sempre senti que se tivesse ido à Escola de Belas-Artes ter-me-ia sido muito útil, do ponto de vista de desenhar bem, embora eu sempre tenha desenhado toda a vida, mas disciplinar o desenho, a forma de olhar, a própria história de arte. Mas como não fui, senti essa liberdade de avançar. E quando tu falas das cidades, em Luanda eu estava influenciado pela arte ocidental toda, os modernistas, os artistas contemporâneos, tudo isso para mim foi uma descoberta imensa. Mas quando cheguei a Los Angeles, foi um período mais dedicado ao cinema, à rodagem de filmes, fiz várias assistências para outros realizadores. […] Eu sou produto da cultura africana e europeia, e a africanidade marcou muito a minha formação. As férias grandes que passávamos no mato, lá no Sul de Angola em Caimbambo, Cubal, o contacto com essas vastidões de África marcaram-me profundamente. […]

Tu sabes, quando uma pessoa está à distância do seu local de origem, o pensamento é muito fértil, tudo fica mais claro; e ao mesmo tempo também estava num curso interessante que era um programa de estudos africanos na UCLA [University of California, Los Angeles] e no departamento de cinema. […]

Quando andava no liceu, aquilo que eu queria ser profissionalmente era arquiteto. A arquitetura era a minha obsessão e interessava-me essa arquitetura dos bairros pobres, de lata, e acabei por fazer um trabalho fotográfico, muito antes do 25 de Abril e da independência de Angola. Eu andava com a câmara exatamente a fazer retratos das pessoas anónimas e ao mesmo tempo também a fotografar o patchwork que são as junções dos materiais apanhados aqui e acolá – um bocado de madeira, uma chapa – para construir uns habitáculos […]. Como dizia o Luandino Vieira, havia uma sabedoria naquela babilónia de volumes e acabei a recolher materiais jogados fora pela sociedade, restos de madeira, bocados de lata, e a fazer as minhas assemblages, que eram também uma forma de abrir a consciência das pessoas que vão aos museus e às exposições porque de outra maneira essa realidade passa-lhes ao lado. […]

As assemblages eram acompanhadas das fotografias de todos esses anónimos, das pessoas que habitam os musseques e que não são propriamente do interesse dos media.

Antes da guerra, Luanda tinha setecentos mil habitantes, hoje tem quase sete milhões; portanto foi uma coisa muito complicada porque a guerra fratricida que durou trinta anos acabou por trazer pessoas de todas as províncias de Angola que se concentraram em Luanda. Porque, como dizia o Ruy Duarte de Carvalho, «era em Luanda que o telefone tocava». […]

António Ole é o meu nome artístico porque quando era novo, nas minhas primeiras exposições, achava que António Oliveira era muito parecido com António de Oliveira Salazar e então tirei do Oliveira umas letras e ficou Ole. […]

 

IC: Gostava agora que nos focássemos mais nas tuas obras e temáticas: a ilha, o mar, a cidade, a arquitetura, as paredes. Estas temáticas todas têm sempre, de um modo mais claro ou menos, uma espécie de crítica social, ou se calhar a palavra crítica não é a mais correta, é mais uma consciência social.
AO: Uma consciência social, isso. Tu começaste por referir o mar, as ilhas. Eu sou um caluanda puro, como se diz lá na terra.

 

IC: Caluanda?
AO: Caluanda é o habitante de Luanda e a proximidade com o mar é tão intensa e essa proximidade é tão vital para o meu corpo, para o meu equilíbrio. […] E naturalmente acaba por ser muito evidente essa proximidade e essa relação. Eu tenho rotinas e uma delas nessa altura era levar sempre um saco de plástico e ir recolhendo coisas ao longo do percurso pelas praias, pela contracosta, há coisas que o mar às vezes traz que me suscitam… Levas as peças, bocadinhos de coisas, um osso, uma concha e quando levo isso para o ateliê acabo por ter a motivação e inspiração para coisas que eu às vezes nem percebo muito bem; mas há aqui uma forma muito complexa de esses objetos, de essas recolhas me suscitarem obras. […]

O mar de facto tem uma força muito grande, há inclusive imagens que eu tenho filmado. Hidden Pages, por exemplo, é uma obra também muito ligada ao mar e à água. Eu, há muitos anos que me interessava fazer um percurso numa coisa que as pessoas têm um pouco de relutância em falar ou evocar, nomeadamente nos Estados Unidos as pessoas tinham muita relutância em falar no assunto.

 

IC: O assunto é a escravatura.
AO: A escravatura, o trabalho forçado, senti que eles não queriam tocar nisso, era como se quisessem esquecer o passado e para mim o esquecimento é uma coisa terrível, porque acho que é melhor nós evocarmos esses assuntos e falarmos neles para se perspetivar o futuro de uma nova maneira.

 

IC: Provavelmente não há pior racismo do que não falar de racismo.
AO: Claro, sem dúvida. E então acabei por, quando voltei a Angola, acionar esse projeto, mesmo no meu próprio país fala-se pouco. Em Portugal menos ainda porque é um assunto de certa forma tabu. Tenho a consciência que Lisboa foi das cidades mais africanas de toda a Europa. […]

Atualização em 10 outubro 2016

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