O próprio cinema surpreendia-se ao ver os desenhos animados transportá-lo às portas da poesia. Não era afinal senão a saudade do cinema recordando a maneira como havia nascido. Porque a origem do cinema está lá na remota antiguidade: quando ainda nem sequer se sonhava em descobrir a fotografia, já se conhecia a sucessão de imagens para realizar movimento. E então, farto de realidade, o cinema foi buscar de novo a sua lanterna mágica.
José de Almada Negreiros, conferência Desenhos Animados Realidade Imaginada, 1938
Mas quem escreveu esse enredo
que eu represento no personagem de mim?
[…]
Quem me fez o protagonista de uma vida que eu não sonhei?
Quem filmou o meu ser enquanto eu me sonhava?
José de Almada Negreiros, do poema As Quatro Manhãs, 1935
Fazer fotografias com a imaginação
Não sabendo bem por onde anda a realidade, o protagonista começa a fazer fotografias com a imaginação.
José de Almada Negreiros, Nome de Guerra, 1938 (1925)
Estrelas de cinema
A arte é sempre uma transposição da realidade e começa quando a realidade não é a copiada mas a imaginada.
José de Almada Negreiros, conferência Desenhos Animados Realidade Imaginada, 1938
Quadrado azul
De uma vez, num passeio, o arco-íris foi quadrado até ao fundo dos raios X pra lá do cavalo transparente numa continuidade cinematográfica contornando a apologia feminina sagradamente epiléptica em ss de cio todo realce e posse de reflexos. Se eu me detinha a observar o quadrado pla perpendicular do desejo iluminava-se o palco artificialmente leve de triângulo nu em record azuladamente feminino. Os olhos recolheram-se-me pra dentro de um estertor iluminado a escândalo afogueado e ruivamente doido de artifício. Quando voltei outra vez havia uma carta registada para mim.
Dentro só estava um quadrado azul.
José de Almada Negreiros, do conto K4 O Quadrado Azul, 1917
Desenho animado
a boneca — Quando já havia muito tempo que eu não sentia nada em redor de mim, depois de o tambor se ouvir já lá muito ao longe… eu abria assim um bocadinho os olhos sem ninguém perceber… e ficava a perceber tudo… Depois experimentava muito devagarinho mexer um dedo qualquer, ao calhar, e mexia!… […]
o boneco — porque falas tão baixo?
a boneca — (Muito baixinho.) Schiu!… É por causa do Homem… Coitado, se ele soubesse que nós mexemos!… Tu já pensaste a sério a este respeito? Um dia, sem querer, tu julgas que o Homem não está aqui e ele está a ver-te! Que horror!!! Nem quero pensar!
o boneco — Ora! Mesmo que o Homem me visse a mexer, julgava que era um sonho… não acreditava…
José de Almada Negreiros, peça de teatro Antes de Começar, 1921
Realidade imaginada
Desenho, escrevo, esculpo, vitralizo, danço, teatralizo, cinematografizo e, se a minha arte não falar por qualquer destas vozes, que havemos nós de fazer? Façam de conta que eu já morri — e que deixei essas obras póstumas…
José de Almada Negreiros entrevistado por Luís de Oliveira Guimarães, 1942