Entre 2010 e 2013, o Programa Gulbenkian de Cultura Contemporânea «Próximo Futuro» (2009-2015) promoveu, na sua agenda de verão, quatro edições de um ciclo de arte pública nos Jardins Gulbenkian (Jornal Próximo Futuro, n.os 4, 7, 10, 13, 2010-2013).

O coletivo indiano Raqs Media assina um dos trabalhos expostos nos Jardins em 2011. Com o título However Incongruous, é uma peça escultórica em que é notória a citação de Gainda, o famoso rinoceronte indiano exibido em Lisboa durante o reinado de D. Manuel I. Transformado em ícone dos Descobrimentos, o animal ficou célebre através da xilogravura Rhinoceros, realizada em 1515 por Albrecht Dürer, alegadamente a partir de um relato e de um esboço de autoria desconhecida. Após ter sido exibido em Lisboa, Gainda partiu para Roma, destinado a impressionar o papa Leão X e a persuadir a autoridade clerical a sublinhar Portugal como principal potência europeia em territórios não-europeus – um estatuto então em acesa disputa com Espanha. Gainda terminaria tragicamente a sua já trágica história, morrendo vítima de um naufrágio a caminho de Roma.

O coletivo Raqs Media explora simultaneamente o caráter histórico e fabuloso deste episódio, para com ele operar diversas críticas a realidades da História e da contemporaneidade. O modelo tridimensional do rinoceronte é apresentado com uma cela de montar e com um poste de carrossel de feira popular. O alcance satírico é vasto, indo da rábula mais evidente a posições subtis, mas extremamente mordazes, acerca do comércio global, das transações como manifestação de poder, e do modo como essas esferas se foram revolvendo nas suas próprias premissas – desde o mundo quinhentista até ao início do século XXI. Permite também meditar sobre toda a ideia do exótico e sobre o modo como teve no colonialismo ocidental um dos canais das suas buscas e quimeras, tantas vezes violentas.

Podemos imaginar que, simbolicamente, However Incongruous devolvia Gainda a Lisboa, transfigurado em modo de entretém e na fantasia de ser usufruído num jardim público. É um gesto que recorda, assim, as atrações zoológicas que, ao longo da construção da modernidade, foram marcando presença em tantos parques e jardins europeus – inclusivamente nesta mesma zona do antigo Parque de Santa Gertrudes, onde já funcionou um jardim zoológico, e onde atualmente se situa a Sede e Museu Gulbenkian e respetivos jardins.

Os Arquivos Gulbenkian guardam uma memória descritiva deste projeto dos Raqs Media que versa sobre algumas destas considerações (Memória descritiva, 2011, Arquivos Gulbenkian, ID: 267784). Esse texto revela também que o plano inicial seria desenvolver mais modelos de animais de carrossel para irem surpreendendo os visitantes ao longo dos Jardins Gulbenkian. Uma pequena inscrição estaria associada a cada um deles, reafirmando uma dimensão imaginária associada à fábula, ao conto, à dimensão lendária que tantas vezes surge nas apropriações culturais do reino animal, por bestiários ora realistas, ora fantásticos ou exóticos.

O lado literário merece ainda um novo reforço, ao ser revelado, nesse mesmo texto introdutório, que o título do projeto advém das exatas palavras que abrem uma tradução inglesa de A Viagem do Elefante (2008), de José Saramago: «However incongruous it may seem…». O romance versa sobre um outro animal importado da Índia pelos portugueses no século XV, neste caso o elefante Salomão. Novamente transformado em objeto de opulência e poder, Salomão seria submetido a uma segunda viagem, tão mítica quanto factualmente incongruente com as suas origens. Sairia de Lisboa até Viena, como presente do rei D. João III ao seu primo, o arquiduque Maximiano da Áustria, por ocasião do casamento deste monarca.

Registos fotográficos arquivados mostram However Incongruous a ser construída nas oficinas da Fundação Calouste Gulbenkian (Arquivos Gulbenkian, CDVD 1424). Uma reportagem fotográfica realizada pela artista Catarina Botelho cobre diversos eventos do Programa «Próximo Futuro» para 2011 e mostra a peça do coletivo Raqs Media já instalada nos Jardins Gulbenkian (Ibid.).

A edição de 2011 do ciclo «Arte Pública» do «Próximo Futuro» inaugurou a 16 de junho de 2011 e a maior parte das peças ficou patente até 30 de setembro desse ano. Teve coordenação técnica de Jorge Martins Lopes, à semelhança do que acontecera em 2010 e aconteceria em 2012. Simultaneamente a However Incongruous, a edição de 2011 do ciclo «Arte Pública», apresentou as obras Casulo, de Nandipha Mntambo; Abrigo Sublocado, de Kboco; a intervenção de Rodrigo Oliveira e Raquel Melgue no projeto de continuidade na Rulote; a segunda versão dos Chapéus de Sol, da arquiteta Inês Lobo, já apresentados em 2010, e agora com contribuições de Rachel Korman, Bárbara Assis Pacheco, Isaías Correa e Délio Jasse. Os Jardins voltavam também a acolher a Tenda, desenhada por Marisa Vinhas, e igualmente proveniente da edição de 2010. Nela, foram apresentadas obras literárias de autores provenientes de África e da América-Latina e esteve disponível para consulta o website Buala (Jornal Próximo Futuro, n.º 7, mai. 2011, pp. 26-29).

Na cobertura da imprensa, mencione-se um artigo de Celso Martins para o Expresso acerca do ciclo «Arte Pública» do «Próximo Futuro» de 2011 (Martins, Expresso, 25 jun. 2011).

Criado em 1992 em Nova Deli, o coletivo Raqs Media é composto por Jeebesh Bagchi (1965), Monica Narula (1969) e Shuddhabrata Sengupta (1968). A sua atividade multifacetada tem vindo a mover-se entre a criação artística, os projetos curatoriais, a produção ensaística e teórica e a edição.

Daniel Peres, 2019