Não há criação sem erotismo.

Ana Hatherly, Entrevista a Ana Marques Gastão

 

Na sua estadia em Londres, Ana Hatherly realizou diversas séries de pequenos desenhos que exigiam uma grande acuidade, concentração e uma sensibilidade muito íntima do espaço. Entre elas encontram-se vários desenhos complexos, fibrilosos, alguns até coloridos, da série Paisagem Interior.

 

Aparentemente, estas paisagens insondáveis, constituídas por correntes de magma, conservam ainda a lenta volúpia do movimento. Sente-se até uma morna sensação acompanhada de uma pulsação que revela tratar-se não de terra mas de carne. Nestas paisagens interiores, Ana Hatherly sobrevoa o corpo físico interior dos músculos e das vísceras. As linhas topográficas são fibras e nervos que sulcam na paisagem depressões, irregularidades, cavidades, percursos.

 

Mas esta não é uma viagem ao interior do corpo. Pelo contrário, o corpo foi virado do avesso, de modo a o dentro vir à superfície e tornar-se paisagem. Esta exposição daquilo que se encontra oculto, escondido, sepultado, cria uma cisão muito profunda nas noções de interior e exterior, tornando-as coordenadas relativas e insituáveis.

 

Ao mesmo tempo, o recurso a procedimentos dinâmicos, como a torção e o embrenhamento, testemunha um gosto maneirista, barroquizante, na senda do pintor italiano Arcimboldo (1527-1593); porém, o seu processo é exatamente o inverso deste, pois se o pintor antropomorfizava a paisagem, Ana Hatherly transforma as entranhas em naturezas caprichosas.

 

A carne expõe, então, as suas dobras, entrelaça-se em nós, eróticos, sedutores; assemelha-se a vulvas, retrai, cresce, estremece com o deslizar fluído e penetrante da matéria. E tudo parece acontecer na noite escura, provavelmente durante um sonho, que mais tarde a artista irá contar nas suas Tisanas.

 

 

JB

 

Setembro de 2010