Realizada em 1987, Sem título (barco partido) é uma grande escultura de chão (4 metros de comprimento) em calcário branco de formato oblongo e horizontal que se enquadra num ciclo de trabalhos em pedra talhada e assemblada que Manuel Rosa desenvolveu ao longo da década de 1980 e ainda nos anos de 1990. Levada à 20ª Bienal de São Paulo, Brasil, em 1989, a presente obra, assimétrica, descentrada nas placas que lhe servem de base (igualmente partidas e assimétricas), com partes de cavername e casco aparentes por entre secções inacabadas de pedra – sugere uma reflexão poética sobre o caráter processual (quer dizer intencional, controlado pela vontade e pela consciência e simultaneamente contingente ou acidental) do ato escultórico, reenvio da forma ao informe e do informe à forma. Entretanto, é a barca uma pura representação, forma cuja função – se confrontada à simbolização do movimento no espaço e no tempo –, se apresenta jacente, negativa, de absoluta impossibilidade.

Sem título do CAM pode ser colocada em paralelo com outro “barco” em depósito na coleção de Serralves, seu duplo invertido. Nesta última é o casco exterior com a sua linha de querena evidente que emerge dos paralelepípedos de calcário, blocos aparelhados com a face superior deixada em tosco. Ambas as obras colocam em evidência uma linha de investigação comum a diversas obras deste período criativo de Manuel Rosa: a tentativa (que é um paradoxo insuperável) de plasmar na pedra o movimento transitório e o efémero (através das fraturas, da montagem, das marcas de corte), a livre improvisação sobre valores de escala, forma e função (a passagem do informe à forma podendo evocar a génese primordial da escultura como de toda a criação), com a utilização de um material tão comum na paisagem portuguesa, o calcário.

Ana Filipa Candeias

Maio de 2013