No início dos anos 80, Julião Sarmento começou uma nova etapa do seu trabalho. Por se encontrar numa intensa fase de produção, a utilização do papel como suporte mostrou-se profícua para o artista, que, assim, secundarizou o uso da tela. De cor ocre e irregular, o papel escolhido apresentava-se bastante desgastado e pouco resistente, como evidencia a série Noites Brancas. Os desenhos que a constituem são caracterizados por uma imagem central na área superior e por colagens na margem inferior, que formam fragmentos mais ou menos perceptíveis, desenhos incompletos ou mais rigorosos.
A obra aqui apresentada pertence a esta série: desenhada a preto, a imagem indicia uma cena erótica constituída por dois nus femininos que se tocam. No espaço contíguo inferior, as colagens relacionam-se directamente com a imagem central, mas não garantem uma leitura nítida e definida.
Esta estética da fragmentação opõe-se a uma proposta de finalização. Ou seja, por não serem facilmente definidas, apontando várias sugestões de representação, as imagens escondem algo, e até nos permitem imaginar o que não é visível. O próprio material utilizado induz nesse sentido, pela sua fragilidade. Ora, o corpo fragmentado e erótico é uma característica geral da obra de Sarmento, uma especificidade visível nos seus filmes, bem como nos seus desenhos, na sua pintura e nas suas fotografias.
Em relação à designação desta série, convém assinalar que Noites Brancas é o título de um romance de Dostoiévski (publicado em 1848), adaptado ao cinema por Luchino Visconti em 1957. O romance é um monólogo solitário; uma relação entre o dia e a noite, a realidade e o sonho. As Noites Brancas de Julião Sarmento afirmam-se como fugas da solidão, encontros de prazer, uniões fortuitas. São as noites “brancas” de insónia que se diluem lentamente no dia.
PR
Janeiro de 2010