Nocturno (1911) assume-se como um dos trabalhos em que António Carneiro explora de forma mais manifesta o universo e a potencialidades da estética simbolista. Um dos aspetos centrais do Simbolismo foi a reabilitação e exploração de uma componente subjetiva na representação da paisagem, num desejo de individualidade e de uma nova espiritualidade contrárias à mentalidade positivista, mecanização e ânsia de progresso que caracterizavam a sociedade fin de siécle. A paisagem surge, por isso, frequentemente como metáfora da relação entre o artista e o mundo, como espelho de uma “outra” realidade, não aquela que o olhar descritivo e pretensamente objetivo do naturalismo pretendia captar, mas uma paisagem interior, capaz de exprimir e projetar os estados emocionais do sujeito. Em Nocturno, a opção pela representação da noite, num cenário onde a água marca presença e o casario é apenas denunciado pelas ténues luzes que se enfileiram ao longo da margem, parece apontar, não tanto para a ideia de sono, fim, mas para uma ideia de gestação e regeneração que o dia fará despontar. A lua, elemento ligado ao universo feminino, juntamente com a água, associada à fecundidade, relembram a constante e eterna capacidade de renovação da natureza, segundo ritmos e tempos a que o Homem não é alheio. A noite apresenta-se, desta forma, como entidade protectora, convidando à contemplação e recolhimento.
Do ponto de vista formal, esta é uma obra de grande modernidade, visível na construção da composição a partir da mancha de cor, numa secundarização (ou mesmo abdicação) do desenho preparatório, utilizado por Carneiro em trabalhos e encomendas de cariz mais académico. O predomínio de tons escuros apenas é contrariado pelo amarelo, rosa e violeta da luz lunar, numa pincelada solta, onde a procura de nuances nos focos de luz revela a vontade de experimentação do artista, verificável já numa obra anterior, de 1906, de tema similar, que integra também a coleção do CAM.
Daniela Simões
Março 2015