O acaso é uma noção científica.

Ana Hatherly, Estruturas Poéticas

 

Em 1966 Ana Hatherly publica no segundo caderno antológico Poesia Experimental, organizado por António Aragão, Ernesto Melo e Castro e Herberto Helder, o poema visual No grande espaço é sempre noite. No verso, encontra-se o texto eros frenético, uma impressionante imagem do desejo como voragem. A relação deste texto com o desenho de título homónimo é pouco clara, mas ambos traçam o espaço a partir de coordenadas subjetivas como o tempo, a densidade, o ritmo ou até o desejo e a magia. O espaço mede-se a partir de valores sensíveis, daí poder-se falar de espaço geométrico, simbólico, da escrita, do desenho.

 

No grande espaço é sempre noite relaciona-se com o espaço astronómico, sideral, onde a luz não consegue fazer-se refletir, deixando tudo numa escuridão eterna. A este espaço Ana Hatherly empresta a imagem do círculo perfeito, geométrico, mas corta o seu topo. Esta «subversão», como lhe chama a artista, desvia a expectativa natural de uma leitura assente em mapas astrológicos ou astronómicos. Tal não significa que não haja uma relação direta com essas cosmologias. No entanto, o universo que Ana Hatherly pretende evocar é mais largo do que aquele feito de astros e zodíacos.

 

A artista recua à Renascença para assistir à breve humanização do espaço em cartografias, diagramas e métodos que testemunhavam a harmonia absoluta de Deus. Breve, porque o movimento dos corpos sofre desvios, o aparecimento de elementos destrutivos abre brechas nos sistemas, suspendendo a ordem e libertando o aleatório.

 

Neste desenho, a circularidade da escrita, do tempo, das rotações, é não só quebrada pelo corte, como pela abertura de um outro lugar, habitado por esferas celestes, pequenos corpos de escrita, como pensamentos ou sonhos. Esta oposição torna-se ainda mais incisiva pelo cuidado que Ana Hatherly tem ao estabelecer uma relação diametral das cores.

 

 

JB

 

Setembro de 2010