É inevitável pensar o trabalho de Ana Hatherly sem o associar à veemência negra da tinta permanente sobre o branco da folha, seja ela da escrita, do desenho, ou até mesmo da tinta acrílica preta sobre tela. Contudo, a artista tem um grande domínio do uso das cores e fá-lo sem complexo, na sua máxima vibração, com uma certa influência pop ou em sedutoras velaturas. Ana Hatherly nunca frequentou aulas de desenho ou pintura, mas o fascínio da imagem e o seu poder de comunicação levou-a a experimentar diversos mediuns.

 

O retrato aparece na sua obra como pedra-de-toque para a exploração de relações subjetivas transfiguradas na cor, na composição, no desenho. Longe fica a fidelidade ao modelo, porque o que interessa a Ana Hatherly é traçar o retrato vivencial. Para tal, contribuíram as relações de amizade, no caso dos retratos de amigos, ou de admiração e cumplicidade literária, como nos mostram os retratos de escritores célebres.

 

No auto-retrato, as linhas de força do rosto de Ana Hatherly nada têm que ver com um esgar, um timbre, uma feição. São elementos compositivos como figuras geométricas, manchas de texto ilegíveis ou ainda, de modo irónico, a imitação declarada de um traço («à la Matisse»), que caracterizam a visão que tem de si mesma.

 

Auto-retrato à la Füssli é o título de uma série de três pinturas-desenho que a artista realizou a propósito de uma exposição do seu amigo António Areal, na Galeria São Mamede, em Lisboa, no ano de 1973. Em cada obra pode ler-se, ainda que penosamente, pois a artista retorce a escrita até à quase ilegibilidade, que Areal produziu uma série de pinturas baseadas em The Nightmare [O Pesadelo] (1782), de Heinrich Füssli, depois de ela lhe ter oferecido um livro sobre o pintor suíço.

 

Partindo dessa composição, Ana Hatherly assume o lugar da figura feminina abandonada ao sono enquanto a velá-la está a figura informe de Areal.

 

 

JB

 

Setembro de 2010