Intitulada “A voz nascia na tribuna…”, esta ilustração da autoria de João Abel Manta pertence ao conjunto de trabalhos que pontuam graficamente a fábula Dinossauro Excelentíssimo de José Cardoso Pires (Lisboa: Arcádia, 1972), história satírica do Estado Novo e retrato do percurso de António de Oliveira Salazar desde a sua formação em Coimbra à queda do regime. Inserida na segunda parte do livro, o desenho aflora as bases e as características do exercício do poder, bem como o estilo pessoal e político do governo de Salazar. O cenário é a Praça do Comércio, descrita pelo escritor como a Praça dos Acontecimentos, onde numa Torre — denominada na mesma obra o “Reino do Ermitão” — se situa a tribuna do ditador, o “Imperador”.

A ilustração enquadra-se num conjunto de trabalhos que Abel Manta dedicou a Monumentos Nacionais. Todavia, ao contrário do que é comum nas outras obras dedicadas a esse tema, aqui o artista não recorre à fotografia de verdadeiros monumentos turísticos, usando antes o desenho como forma de os representar. A fotografia e a técnica da colagem estão presentes mas servem para criar uma imagem unitária que mostra, em redor da torre elevada, monumental, uma massa indistinta de indivíduos. Estes, ante o pedestal que ergue a tribuna, prestam reverência e adoração tanto à figura isolada do ditador como aos monumentos nacionais tão exaltados e valorizados na construção e imagem identitária da nação e da instituição do regime do Estado Novo. A marca satírica do cartoon manifesta-se igualmente na equiparação deste episódio de adesão do povo ao alto dignitário do regime com a natureza das manifestações religiosas, com o povo em baixo, representado como multidão de seguidores, encerrado num manto de guarda-chuvas, parecendo ao mesmo tempo ignorar a figura do poder aqui representada numa silhueta negra, fantasmática, distante do real e isolada no seu púlpito.

Sandra Vieira Jürgens

Maio de 2015