A série Metamorfoses da Romã foi realizada no período em que Ana Hatherly viveu em Londres, no início da década de 70. São vinte e três pequenos desenhos, ou mesmo pinturas intimistas, feitos com tintas de escrever, lápis de cor e colagens, no tempo que a artista apelida de happy hour, isto é, naqueles momentos em que se deixa levar pelo desvelar da imagem, pelo prazer de rabiscar, colorir, reinventar. Esta espécie de pausas revelam-se importantes, não pelo seu lado lúdico mas pela possibilidade de uma experimentação mais livre. 

 

A partir de uma reprodução em postal da pintura de uma romã, de um artista anónimo do século XVI, Ana Hatherly iniciou uma pesquisa visual em torno da forma deste fruto, ainda agarrado a um galho e com uma pequena brecha que deixa entrever algumas sementes. A cor é decisiva na evolução da série pois tanto serve para afirmar a legibilidade das formas como para dissolver a forma no fundo, até à impossibilidade de discernir qualquer forma ou motivo. Ana Hatherly trabalhou para a desconstrução da romã, para a destruição da imagem subsidiária da origem, ou melhor, para a metamorfose, até chegar a um nada que se sustenta na sua pura visualidade. O processo é, por isso, o da recriação, como a artista sustenta num texto sobre a criatividade: «porque se Deus cria a partir do nada, os humanos só criam a partir do que já existe, quer dizer, os humanos recriam.»* De imagem em imagem, a artista perscruta os meandros da cor, até chegar à essência da pintura, da mancha.

 

Nas obras em que as formas são recortadas por um desenho preciso, Ana Hatherly aplica ainda a colagem de pequenas estrelas que mimetizam a coroa da romã. As ligações mitológicas em torno deste fruto sanguíneo não escapam à artista que, nas suas investigações académicas, se debruçou também sobre as suas associações simbólicas na religião, na monarquia e na arte. 

 

 

* Palestra de Ana Hatherly no Museu de Arte Contemporânea – Museu do Chiado aquando da sua exposição Viagem à India, in HATHERLY, Ana, Interfaces do Olhar. Lisboa: Roma Editora, 2004, p. 93.

JB

 

Setembro de 2010