Biografias
O percurso vasto e múltiplo de Ana Hatherly desdobra-se entre as artes plásticas e a poesia, a televisão e a edição, o ensino e a investigação, a performance e a tradução. Dir-se-á, porém, que o seu trabalho começa sempre pela escrita, assumindo-se como “um escritor que deriva para as artes visuais através da experimentação da palavra”; começando também, paradoxalmente, pela pintura, como “um pintor que deriva para a literatura através da consciencialização dos laços que unem todas as artes”.
A fluidez disciplinar caracteriza o estudo e a experiência contínuos e mesclados da escrita de Hatherly, quer ela seja “dita, impressa, manuscrita”; arcaica, barroca, oriental; tese, ensaio, poema ou desenho. Escrituras-plásticas, desenhos-escritas, textos-imagem, manchas-signo, as suas obras resultam de um jogo infinito de manipulação da linguagem e da sua forma.
O trocadilho, a repetição, o código, o labirinto e a cópia são alguns dos recursos lúdicos usados pela “mão inteligente” e crítica da artista, gerando ambiguidade, conflito interpretativo, desvio de referência e alteração de sentido. São disso também exemplo os cartazes políticos arrancados às paredes após a revolução democrática portuguesa, cujo rasgar, colar e sobrepor confunde, transforma e liberta a própria mensagem revolucionária.
Aurélia de Sousa nasceu em 1866 em Valparaíso, no Chile, e viveu depois no Porto, em Portugal, na Quinta da China, casa setecentista situada nas margens do Douro, que se tornará ambiente e ateliê para a produção de inúmeras pinturas e fotografias. Interiores intimistas, retratos, cenas do quotidiano doméstico, jardins, naturezas-mortas, flores ou vistas sobre o rio são temáticas recorrentes do seu trabalho, que se caracteriza por um naturalismo expressivo.
A morte prematura do pai intensifica a experiência do feminino numa família maioritariamente constituída por mulheres, várias das quais, incluindo Aurélia, não casarão nem abandonarão a casa materna. A reflexão sobre a condição da mulher na viragem para o século XX e no quadro da sociedade do Porto, onde vive, ou de Paris, onde ingressa na Académie Julian já com cerca de 30 anos, é a chave para a compreensão da sua obra, que foi tardiamente reconhecida pela História da Arte Portuguesa.
Os seus enigmáticos, andróginos e provocadores autorretratos, nos quais se representa com um icónico casaco vermelho, um desproporcional laço negro ou travestida de Santo António, constituem uma histórica manifestação de afirmação autoral protagonizada por uma artista mulher.
Nascida em 1973, nas vésperas do período revolucionário português e crescendo com a democratização do país em curso, Carla Filipe usará desde cedo, no seu trabalho artístico, a autobiografia enquanto arquivo da contemporaneidade.
Partindo do particular e subjetivo para o coletivo e político, dedica-se a temas que lhe são familiares, como os desafios da precariedade, da sobrevivência, da clandestinidade e da independência para analisar questões transversais como as noções de território, de trabalho, de propriedade ou de representação. Nas suas performances, instalações, esculturas, desenhos, cartazes ou livros de artista, a artista questiona tanto as estruturas de inscrição e defesa dos artistas no seu universo profissional e laboral, como das hortas comunitárias no espaço público ou da vida noturna da cidade do Porto, em Portugal.
A sua obra faz uso da energia vital das ruas e dos seus dispositivos de comunicação, como cartazes, palavras e imagens. Coleciona matéria visual do período pós-revolucionário português para, numa “documentalidade experimental”, reter a mancha gráfica e rejeitar o texto, atualizando a sua mensagem panfletária em novas gravuras, cartazes ou bandeiras, declarando, por exemplo, que “A revolução cultural pertence ao artista” ou que “Amanhã não há arte”.
A atmosfera e a mitologia rural do nordeste transmontano estão enraizadas na obra e na vida de Graça Morais. Trabalha entre o atelier de Lisboa e o do Vieiro-Freixiel, aldeia do norte de Portugal onde nasce em 1948 e lugar das gentes cujas histórias se misturam com as dos personagens, sobretudo femininos, que habitam os seus desenhos e pinturas, e que se confundem, por sua vez, consigo própria: “Estou sempre a falar da minha história”, afirma. A sua infância campestre alimentou um imaginário fantástico, repleto de cães, gatos, cabritos, flores e marmeleiros, mas também de medo do escuro, dos lobos, do piar da coruja, da violência dos homens e da adversidade da natureza.
“Chego mais depressa às coisas pelo desenho”, diz, e desenha vigorosamente, em telas de grande formato ou em íntimos cadernos diários, coreografias míticas e trágicas que sobrepõem os segredos de mulheres trabalhadoras, o movimento agitado dos bichos, os ciclos que transformam espantosamente a natureza e as cabeças que contêm aldeias inteiras lá dentro. Mas também “um mundo transfigurado” em barbárie, com o drama da guerra e do êxodo dos refugiados, a fazer sobressair a “coragem de pessoas que vão ao inferno buscar outras”.
A obra de Helena Almeida começa por desconstruir a bidimensionalidade da pintura. Em 1969, quadros tridimensionais deixam entrever o lado oculto da tela, passando a apresentar um lado de cá e um lado de lá. O lado antes invisível revela agora a grade de sustentação do pano, cortina que tapa, destapa, cai e se enrola como as persianas da janela com que se confunde.
Ao vestir a tela, Almeida descobre a relação entre a pintura e o corpo da artista em performance, tipo de ação que se multiplicará e será fotograficamente registada por Artur Rosa, seu marido e “primeiro espectador”. Numa sequência de fotografias a preto e branco, Almeida pincela um enérgico azul, matéria pictórica que depois destaca e guarda no bolso. Esconde-se ou revela-se ao espectador, o mesmo que interpela em “Sente-me, Ouve-me, Vê-me”, série que explora, em inúmeras variações, as impossibilidades sensoriais enunciadas.
Vestindo um “negro profundo agudo”, o seu corpo recortará telas fortemente arquitetónicas, arquitetura que limitará ao espaço do atelier, o mesmo lugar onde pousava para o seu pai, o escultor Leopoldo Almeida, enquanto menina, e onde estudou a capacidade de sedução de uma mulher que envelheceu e que ali mesmo reinventou a sua presença escultórica, atravessando a parede, afundando o pé, a mão ou o corpo inteiro no chão.
Joana Rosa desenvolve a sua obra a partir de doodles e scribbles, termos ingleses para rabisco, sarrabisco e gatafunho, que designam também a prática irrefletida de ações universais como “partir um fósforo entre os dentes, brincar com o pacotinho de açúcar vazio no café ou chupar e trincar uma caneta”.
A artista executa desenhos de forma automática, privilegiando a forma em vez do conteúdo. Alguns desenhos revelam-se saturados, fantásticos e coloridos; outros, realizados a chumbo e grafite sobre papel vegetal, são monumentais e massivos. Os últimos, de um negro macerado, resultam de ações de sobreposição, ocultação e desocultação de camadas, que revelam, no corte em profundidade da matéria, formas mecânicas, escrituras íntimas e desenhos de outrem. Os seus fragmentos são amarrotados, sobrepostos, agrafados e colados à parede no momento da montagem, numa espacialização de grande escala e fortemente performativa, marcada por uma experiência anterior como bailarina.
A uma abordagem interdisciplinar a artista juntou uma pulsão para colecionar, classificar e catalogar objetos e escritos apropriados, assim criando um arquivo de ações e apontamentos que mapeiam o comportamento humano irrefletido.
O trabalho de Joana Vasconcelos manipula os estereótipos e os lugares comuns, conjugando categorias aparentemente opostas como o popular e o erudito, o tradicional e o contemporâneo, o kitsch e o clássico, o público e o privado ou o humor e a crítica, dicotomias cujo confronto está frequentemente na origem das suas obras.
Espetaculares, monumentais e barrocas, as suas esculturas apresentam, às vezes cumulativamente, movimento, som, luz e cromatismo exuberantes. São geralmente construídas através da justaposição repetida de um mesmo objeto para formar um novo objeto, criando, a partir do deslocamento de sentido e da surpresa dessa relação, novas narrativas e significados.
A utilização de tachos, talheres, espelhos, napperons, collants, joias, flores e plumas, objetos quotidianos associados ao universo feminino de uma cultura essencialmente patriarcal, levanta questões de dominação, subjugação e invisibilidade de género.
Algumas das suas obras fazem referência à cultura popular portuguesa, nomeadamente ao fado da Amália, ao coração de Viana, ao galo de Barcelos, à cerâmica das Caldas ou ao croché do Pico, celebrando um imaginário coletivo de simbologia nacional e valorizando os seus gestos, técnicas, materiais, tradições ou rituais.
Tomadas de lugares concretos do sul de Portugal, norte de Itália ou Estremadura Espanhola, as paisagens de Maria Capelo perseguem uma milenar e universal tradição paisagística. Em pintura ou desenho, o seu trabalho começa pela observação direta de sítios normalmente agrestes, nem totalmente ocupados, nem totalmente isolados. Essa observação é depois traduzida para as obras, num esforço de recomposição de uma experiência mais do que de reprodução de uma cena.
Austeras e áridas, as suas composições integram um vocabulário reduzido de elementos, composto de árvores e da pontual presença de ramos, arbustos, caminhos ou pedras. Através da retoma e reorganização destes elementos, tanto em relação ao ponto de vista, como da escala e da significação, constrói formas diferentes de expressar uma mesma ideia, fictícia e imaginada, de paisagem. A artista trabalha também com o registo fotográfico, enquanto prova documental que fixa a realidade, suporta a memória e revela os enigmas.
De pensamento rigoroso e labor paciente, a sua pintura convoca a aproximação do espectador à tela para descobrir uma aparente desordem vegetal e geológica e testemunhar a rememoração de acontecimentos fugazes, porque para Capelo, “tudo o que acontece na Terra deixa um vestígio na paisagem, e toda a atividade humana, seja ela política, cultural e económica, modela o lugar”.
Cedo integrada no circuito internacional das artes, Vieira da Silva foi uma figura destacada da Escola de Paris, cidade onde chega para viver em 1928 e onde ocorrem alguns dos mais determinantes encontros da sua vida: com a galerista Jeanne Bucher e com Arpad Szenes, pintor judeu de origem húngara com quem manterá um casamento cúmplice, no amor e na obra.
Vieira da Silva foi a primeira mulher a receber o Grande Prémio Nacional das Artes do Governo Francês, em 1966, mas, apesar de naturalizada francesa, o seu trabalho não deixará de dialogar com Portugal, o seu país de origem, e sobretudo com Lisboa, onde vive uma infância intelectualmente preenchida e onde sempre retorna. A relação com a cidade revela-se na sua obra através da referência constante à sua luz, topografia, arquitetura e azulejos.
O seu imaginário urbano é evocado em pinturas abstratas, que, na sua máxima complexidade, se desmultiplicam em teias labirínticas, grelhas tridimensionais e perspetivas espelhadas. Variando formatos, ambientes e temáticas, entre o intimista e o monumental, o fulgor e a angústia, a representação de si e a representação do mundo, a obra de Vieira da Silva afirma-se como um complexo “teatro de olhos”.
Rosa Ramalho é a maior protagonista do Figurado de Barcelos, uma tradição neolítica de trabalho com barro, específica daquela cidade do norte de Portugal, que se distingue da olaria pelo seu carácter espontâneo, lúdico e não necessariamente utilitário.
As peças da barrista são enigmáticas e desconcertantes, confundindo livremente o quotidiano, o fantástico e a religião. Os “bonecos” com que modelou e expandiu a tradição e a imaginação são cristos, santos, diabos e alminhas, “bichos ferozes” e híbridos como lobisomens ou homens com cabeça de burro, mas também mulheres em carroças de bois ou crianças em bicicletas, figuras que evocam e misturam as narrativas e rituais ancestrais da região. Essenciais na forma, mas com pormenores grotescos e inesperados, as suas peças variam entre o ocre monocromático e o profusamente colorido.
Obra singular, de um expressionismo excêntrico e surrealizante, foi inicialmente apoiada por artistas contemporâneos – primeiro por António Quadros e depois por Ernesto de Sousa, nas décadas de 1950 e 60 – no âmbito de um movimento etnográfico que promoverá a abolição de fronteiras entre arte popular e erudita, e que dignificará a primeira como “arte ingénua”, livre dos códigos da arte moderna e contemporânea.
Salette Tavares foi uma artista erudita, interventiva e múltipla. Pioneira da performance, da poesia concreta, da poesia espacial e da arte concetual, destacou-se como poeta, crítica, ensaísta, tradutora e performer, mas também como pedagoga, agitadora cultural e dirigente associativa. Autora de uma obra extensa, radical e provocadora, afirmou que “fabricar é o mais religioso serviço do homem”.
O seu trabalho explora as possibilidades de conjugação da escrita, imagem, página, corpo e espaço, resultando em objetos e poemas singulares que desafiam e subvertem as regras da linguagem. A exploração plástica, lúdica e paródica da palavra, tanto ao nível gráfico como fonético, e a transformação de objetos banais em experiências poéticas, estão na base de um experimentalismo formal e comunicacional que se encontrou com a instalação, a tipografia, a serigrafia, a gravura, o bordado ou a tapeçaria.
“Trago a minha infância pela mão”, dirá para justificar a persistência do humor, do jogo, da brincadeira, da transgressão e da experimentação como um “estado natural e permanente” do seu trabalho. Partindo da sua condição de artista-mulher-mãe, os “diálogos criativos” que primeiro estabelece com a família testam a perceção criativa e convocam a participação ativa do público.
Sarah Affonso passa a juventude em Viana do Castelo, norte de Portugal. As festividades, crenças e tradições do Minho, em particular as procissões, os arraiais, os bailes e os casamentos, tornam-se o pano de fundo de um imaginário idílico e quase mitológico onde, afirmava, “tudo são quadros à espera de pintores”. Affonso foi também marcada pela arte popular ali produzida, nomeadamente pelos brinquedos de figurado de Barcelos cuja representação integrava nas pinturas.
De cores vivas e vibrantes, as suas obras, alegóricas e aparentemente ingénuas, são modernistas no tema, nas referências, na síntese das formas, no recorte das figuras e no rigor da composição. Intuitivamente etnográfico, o seu olhar interessa-se pelo primordial rural, pelos rituais dos pescadores, pela ocupação das mulheres e crianças, e desenvolve-se em desenho, bordado e cerâmica, mesmo com o abrandamento da produção da pintura após o seu casamento, em 1934, com Almada Negreiros.
O retrato íntimo – de si, dos filhos, dos netos – assumirá uma enorme relevância no seu trabalho. Integrada num meio artístico essencialmente masculino, fará uma importante série de retratos dos amigos e companheiros de trabalho, numa linguagem formalmente sintética, mas com a densidade psicológica de quem entra “na pintura por emoção”.
Sónia Almeida questiona a ideia de pintura como sistema de linguagem, gesto decorativo ou processo conceptual. As suas pinturas apresentam cores intensas e vibrantes, aplicadas em manchas saturadas e em camadas ora opacas ora transparentes, explorando os limites da figuração e da abstração. Desdobram-se também em tapeçarias, algumas das quais criadas pela impressão de imagens pixelizadas onde a imagem se confunde com a própria textura.
O livro, enquanto forma, o texto, enquanto tecelagem ou estruturação de palavras, ou a letra, na sua expressividade formal ou singularidade fonética, surgem com frequência como tema e objeto. Entre o analógico e o digital, Almeida referencia, entre outros, o Alfabeto Antropomórfico medieval, em que corpos contorcidos dão forma a letras; as Matrizes Progressivas de Raven, figuras usadas para testar o raciocínio analógico, a capacidade de abstração e a perceção; padrões gerados de falhas criadas por websites a partir de imagens digitais; ou técnicas e iconografias associadas ao feminino, ao delicado e ao bem-fazer.
As suas pinturas, realizadas a partir da utilização de materiais como contraplacado, dobradiças e luzes LED, montadas em mecanismos ou posicionamentos assimétricos, apresentam deslizamentos, desdobramentos, sobreposições e revelações, jogos de perceção e ilusão que permitem uma observação tátil e performativa, realizada a partir de múltiplos pontos de vista.
Pintora, ilustradora, desenhadora e gravadora, Mily Possoz desenvolveu parte do seu percurso formativo e artístico entre Lisboa, Dusseldorf, Bruxelas e, sobretudo, Paris. Apesar de toda a sua produção ser atravessada pela prática da pintura, caracterizada pelo uso de um colorido forte e sensualista, pela pincelada enérgica e solta e pela atmosfera poética dos temas, a sua obra será sobretudo notabilizada na gravura, e em particular na sua aplicação à ilustração e ao mercado editorial que lhe permitiu viver sempre do seu trabalho.
Foi membro fundador da sociedade Jeune Gravure Contemporaine, criada em Paris em 1929, integrou exposições coletivas de gravura onde se destacaram nomes como Cézanne, Matisse ou Picasso. Explorou as técnicas da ponta seca e da litografia, no âmbito das quais se deixou contaminar pela estética despojada e estilizada da gravura japonesa, patente, por exemplo, no desenho de gatos; mas também pela observação demorada da pintura flamenga e surrealista, visível na subtil distorção figurativa que caracterizaria naturezas-mortas, retratos e paisagens.
Destacam-se, na sua obra, os cenários citadinos cosmopolitas e os interiores domésticos burgueses secundarizados por homens, gatos e cães e protagonizados por figuras femininas em leitura, contemplação, descanso, lazer e confraternização, mulheres modernas, emancipadas, independentes e intelectuais como a própria Mily.
É no contexto do pós-guerra que Maria Lamas, escritora, jornalista, ativista feminista e opositora política ao regime ditatorial português, realiza o projeto editorial As Mulheres do Meu País, uma extensa coleção de imagens fotográficas através da qual faz um retrato detalhado dos costumes, atividades e condições de vida das mulheres trabalhadoras portuguesas. O livro organiza os retratos em dez tópicos gerais – a mulher camponesa, a mulher operária, a mulher da beira-mar, a mulher da beira-rio, diversas ocupações da mulher do povo, empregadas e profissionais, indústrias caseiras, doméstica, a intelectual e a artista – e articula fotografias produzidas por Lamas, tiradas de norte a sul de Portugal, com imagens de outros autores e proveniências e textos longos e narrativos que as interpelam criticamente.
Descrito por Lamas como uma “expressão de fraternal solidariedade para com as mulheres do meu país”, As Mulheres do Meu País foi editado em fascículos, entre maio de 1948 e abril de 1950, como resposta direta à política de dissolução do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, organização histórica à qual Lamas presidira e que assumia, desde 1914, um papel determinante na representação das lutas do movimento feminista internacional em Portugal. Documento ideológico singular, foi interpretado como uma obra de contrapoder num país deprimido e sobrecarregado por políticas fascistas, padrões morais machistas, analfabetismo feminino generalizado e iconografias folclóricas e pitorescas.
Lourdes Castro vive em Paris a partir de 1958 onde, em parceria com René Bértholo, António Costa Pinheiro, Gonçalo Duarte, José Escada e João Vieira, outros jovens artistas portugueses ali culturalmente exilados, funda a revista KWY, que contará também com a colaboração de Christo e Jan Voss. Criará constantemente outros livros e álbuns, ensaiando livremente géneros, formatos, suportes e técnicas.
O gosto pelas letras, a poesia e a tipografia está também patente nos altos ou baixos-relevos realizados pela artista, resultantes da montagem, colagem e pintura de objetos quotidianos e domésticos em caixas. A captura, projeção e traçado do contorno da sombra de objetos, mas sobretudo de plantas e amigos, tornar-se-á matriz fundamental do seu trabalho. Pintadas sobre tela, bordadas em lençol ou recortadas em acrílico, as sombras transladadas permitem tornar uma ausência presente, como um duplo que reencarna o original. “É o mínimo que posso ter de uma pessoa”, dirá a artista. Fantasmáticas, flutuantes e transparentes, as figuras beijam-se, fumam e dormem, da mesma maneira que o Teatro de Sombras revela a artista no cumprimento de tarefas banais.
Em 1983 volta, com o artista Manuel Zimbro, para a Madeira, ilha onde nasceu em 1930, vivendo até hoje na casa cujo jardim diz ser a sua tela.
O desenho tem sido a estrutura da obra de Paula Rego, desde a figuração ingénua dos anos de formação na Slade School of Art às colagens políticas sobre um país em ditadura, dos acrílicos narrativos aos pastéis de grande formato, dos estudos a lápis e aguarela às gravuras a água-forte e água-tinta.
A linha de pesquisa permanente da artista é a reinvenção imagética da literatura de autores como Charlotte Brontë, Eça de Queiroz, Franz Kafka, Hans Christian Andersen ou Martin McDonagh, pretendendo “integrar esses contos eternos na nossa mitologia contemporânea e experiência pessoal através da pintura”. Com base nessas histórias – contos tradicionais ou de fadas, romances ou textos de teatro – Rego constrói uma linguagem figurativa profundamente original.
Os modelos para os protagonistas das ficções pictóricas de Rego são pessoas do círculo íntimo da artista ou “bonecos” tridimensionais, infantis e grotescos, produzidos por si própria e integrados em cenários simbólicos e fantasistas. Tomados da observação direta, os modelos materializam a expressão de sentimentos e traumas individuais, mas sobretudo coletivos e femininos, nomeadamente na chamada série “Aborto”, manifesto político a propósito do primeiro referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez em Portugal. Os seus quadros vivos propõem um assombroso retrato da sociedade contemporânea e, simultaneamente, da própria natureza humana.
A reflexão em torno do corpo e do espaço, ou a desconstrução dos mecanismos de consagração e receção da arte, são problemáticas transversais ao conjunto da obra de Ana Vieira. O seu percurso revela uma complexidade disciplinar e uma poética que cruza o teatro, a pintura, a escultura, a fotografia, o som, o ambiente ou a instalação.
Os títulos das suas exposições, que realiza a partir de 1968, descrevem a natureza do trabalho apresentado. Imagens Ausentes ou Ambiente exploram dicotomias como público/privado, presença/ausência, interior/exterior ou transparência/opacidade. Numa sala de jantar, pratos, talheres, copos encontram-se rigorosamente organizados sobre uma mesa, rodeada de cadeiras. O público ouve e entrevê o ambiente familiar que lhe é vedado, expectante de uma ação que jamais se desenvolve. Uma rede garante a inacessibilidade da obra, encenação do constrangimento afeto à experiência comum do público de arte.
Da silhueta recortada, ao contorno projetado, ao objeto escondido, à sala revelada, ao corredor percorrido, à casa desejada ou ao vulcão atravessado, as cenografias de Ana Vieira viajam da galeria para o espaço público e até à paisagem natural dos Açores, onde passou a sua infância, numa escala progressivamente dimensionada para nelas se inscreverem os nossos corpos, sucessivamente convidados a percorrê-las e habitá-las.
A biografia de Ângela Ferreira mistura-se com a sua obra. Nasceu em Maputo, antes Lourenço Marques, na ex-colónia portuguesa de Moçambique, e estudou na Cidade do Cabo, na África do Sul, durante o apartheid. A sua pesquisa é fundada em narrativas coloniais e pós-coloniais, propondo uma revisitação escultórica do passado recente das relações de poder entre povos e países.
O “fim do colonialismo, a emergência de novos países e o surgimento de uma África independente, é o período que mais suscita a minha curiosidade”, dirá a artista, cujo trabalho é particularmente focado nos movimentos de libertação, nas dinâmicas revolucionárias e nas utopias políticas, sociais e culturais, que proliferaram naqueles contextos.
A prática artística de Ferreira emerge de processos baseados na investigação histórica, interpela objetos e discursos do modernismo e materializa-se em instalações formalmente apuradas onde coabitam maquete, texto, desenho, escultura fotografia, som e vídeo. Alternadamente inspiradas em arquiteturas móveis e imóveis, edifícios e monumentos, estruturas autorais ou comunitárias, veículos de propaganda e contrapoder, as suas obras celebram, cartografam, interpretam e arquivam modelos do passado, imaginando possíveis futuros.
A pesquisa de Grada Kilomba cruza os estudos pós-coloniais, os estudos de género, o teatro e a literatura. A sua obra funde as linguagens artística e académica, utilizando indistintamente meios como o texto, o livro, a fotografia, o vídeo, a instalação, a encenação, a música, a conferência-performance. “Não estou interessada em trabalhar numa só disciplina; estou interessada em contar histórias”, afirma.
Artista da palavra, com raízes em Angola e São Tomé e Príncipe, parte de protocolos da cultura oral negra, contemporânea e ancestral, do continente às diásporas, para contar histórias de esclavagismo, colonialismo e racismo quotidiano. Ensaiando a mudança dos seus protagonistas e narradores habituais, traz as vozes e os corpos silenciados para o centro do discurso. Transporta-nos, com a sua voz, para cenários digitais e futuristas, gráficos e minimalistas, de fundo negro ou branco, com iluminação, sonorização, texto e composição rigorosas, onde atores negros e a própria artista se movimentam e tomam a fala.
Através da encenação de textos fundadores como os mitos de Narciso e Eco ou a história da Escrava Anastácia, ou da leitura do seu livro Memórias de Plantação, Kilomba expõe a importância da consciencialização e desconstrução do racismo e das etapas necessárias ao seu processo: “negação, culpa, vergonha, reconhecimento e reparação”.
A prática serial do desenho desenvolvida por Ana Léon está na base da sua descoberta da linguagem da animação cinematográfica. A imagem em movimento, à qual chegará através de um processo manual, e a passagem da abstração à figuração, revelar-se-ão estruturantes no percurso da artista.
Léon usa bonecos articulados ou demoradamente modelados em argila como elementos visuais principais, manipulando-os e fotografando-os sobre fundos negros, disparando, imagem por imagem, uma película completa de Super 8. As animações são sonorizadas a partir de uma edição de fragmentos musicais de fontes diversas. Outras obras serão já produzidas em vídeo, mas a crueza plástica e o registo envelhecido transparecerão sempre o caracter artesanal e precário de todo o processo.
Os ambientes sonoros e visuais, com iluminação instável, resultam psicologicamente densos. As ações, interações, performances e coreografias dos personagens, humanos, animais e brinquedos, são tão violentas e cruéis como inocentes e absurdas, lúdicas e risíveis, transportando uma perversidade infantil mas também uma atmosfera poética, melancólica e assombrada. “A temática trata de conflitos, de comunicações improváveis”, confirma a artista, sinalizando uma tensão que assola também a relação entre a produção de filme e a produção de desenho no seu trabalho, tão autónoma quanto metamórfica e canibalística.
A especificidade do lugar é de tal forma determinante no trabalho de Armanda Duarte que as suas propostas artísticas são realizadas em função da sua observação e análise. A artista observa as características e detalhes de cada um desses contextos para encontrar a essência a partir da qual conduzirá o processo de criação até ao momento de receção da obra. A sua poética espacial integra o desenho, a escultura, a instalação e a arquitetura, provocando experiências subtis e intimistas.
Duarte produz encenações despojadas, austeras e delicadas, que resultam de ações de manipulação e composição de objetos quotidianos como pedras, talheres ou tampas de latas de conserva, de acordo com objetivos precisos como medir, equilibrar, replicar. No seu trabalho, objetos e gestos simples são sujeitos a processos repetitivos e sistemáticos, quase científicos, que implicam a conceptualização da ação, a definição de critérios de pesquisa, a normalização de procedimentos de recolha e a edição rigorosa.
O intenso labor de Duarte apresenta um resultado aparentemente improdutivo, silencioso, discreto, por vezes quase impercetível ou mesmo microscópico, como as marcas de pés e joelhos em pó de madeira que testemunham, no chão e longe do olhar do público, o lento desaparecimento de um objeto e o aparecimento do corpo que o faz desaparecer.
Embora se relacione com o espaço, a arquitetura e a paisagem, o trabalho de Inês Botelho é eminentemente escultórico. Explora materiais como cal, barro, madeira e metal, desafiando-os tecnicamente com propostas de resultados tão exatos quanto impossíveis. A partir de um desenho previamente projetado, e apoiando-se na experiência e colaboração de artesãos de ofícios tradicionais, Botelho ensaia a alteração das qualidades e estados físicos das matérias-primas para ludibriar e subverter fenómenos e conceitos elementares e universais como massa, movimento, sombra, gravidade, orientação e tempo.
No desenho como na escultura, as suas ações assentam num vocabulário geométrico – como linha, rebatimento, translação e rotação –, arquitetónico – como muro, tenda, prumo, estaca e habitante – ou geográfico – como fronteira, mapa, paisagem e território –, a partir do qual se constrói a sua poética formal. As suas obras são desenhos no espaço que se formalizam enquanto propostas insólitas de interação. Põem em causa os paradigmas de ordenação do mundo, nomeadamente os ciclos cósmicos e planetário, e desestabilizam as dinâmicas das relações entre pessoas, objetos e espaços, induzindo à perceção irrealista da escala e da perspetiva e colocando em tensão a ideia de espaço comum.
Particularmente interessada na filosofia da linguagem e nos mecanismos de perceção e comunicação, Luisa Cunha desenvolve trabalho em desenho, vídeo, fotografia, objetos, intervenções e performance, mas sobretudo em textos e esculturas sonoros, criando propostas que rompem as fronteiras entre o público e o privado, e que assumem o tom íntimo da voz que as enuncia: muitas vezes, o da própria artista.
Os dispositivos das suas obras são minimalistas e contidos. A sua discrição permite focar toda a atenção na escuta, no detalhe e pormenor do texto escrito e da palavra dita, enchendo o espaço de imagens mentais e criando esculturas ambientais. As suas mensagens, tão simples quanto insólitas e impertinentes, interpelam o ouvinte em forma de murmúrios, sussurros ou segredos. Expressões como “É aqui!”, “Shiu”, “Luisa”, “Não, não é ele” ou “Senhora! Toda a gente sabe!” surpreendem durante o percurso expositivo, enquanto outras como “Turn around” ou “Os visitantes que vêm a esta exposição são gentilmente convidados a permanecerem numa posição erguida e a manterem-se em silêncio” comentam e induzem o comportamento do público e subvertem o protocolo institucional. Escutados, repetida e continuadamente, estes dizeres perdem a emoção e sentido iniciais para se abrirem à imaginação e significação do ouvinte.
Maria Antónia Siza foi criadora de muitas centenas de obras sobre papel, nomeadamente desenhos a tinta-da-china, aguarelas, guaches e gravuras, mas também de bordados e algumas pinturas. A sua produção ficará, no entanto, desconhecida do público até muito recentemente, quase meio século passado sobre a sua trágica morte, aos 32 anos.
O seu desenho é sobretudo figurativo, de expressão linear e registo caligráfico. Começava sempre por desenhar os pés aos personagens, que depois cresciam espontaneamente no papel em traços enérgicos, ascendentes e ziguezagueantes. Assim se revelavam seres surrealizantes, grotescos, deformados ou contorcidos, em ações e gestos indiscerníveis, mas individualizados, surgindo de pé, caídos no chão ou deitados numa cama. Estas figuras, homens e mulheres envelhecidos, decrépitos e agonizantes, parecem quase sempre flutuar. Aglomeradas em constelações fantasmáticas, movimentam-se e equilibram-se em coreografias dinâmicas e melancólicas, de enorme complexidade e rigor compositivos, encenando gestos comuns e solidários. Outras, pelo contrário, aparecem isoladas, silenciosas e enigmáticas, sobre o fundo branco e vazio da página.
Inquietante e bizarro, delirante e fantástico, íntimo e trágico: assim se caracteriza o universo livre e pessoal de Maria Antónia Siza, um manifesto violento e brutal sobre a fragilidade da condição humana.
O trabalho de Maria José Oliveira desenvolveu-se primeiro em cerâmica, alargando-se depois ao desenho, colagem, joalharia, escultura ou instalação, destacando-se sempre a sua dupla atenção à natureza e ao corpo enquanto conceitos, matérias, suportes e modelos.
A maioria das suas obras são compostas a partir de materiais naturais e orgânicos, dos quais vários impermanentes ou degradáveis, como café, resíduos vegetais, terra, leite, folhas e caules secos, ovos, resina vegetal, pedras, massa de pão, cinza de forno de padeiro, cal, argila crua ou cozida, parafina, ferro oxidado ou papel feito à mão. A paleta dos trabalhos é reduzida e sóbria, variando entre as cores neutras e os ocres vermelhos e dourados, o último acentuado pela aplicação pontual da folha de ouro. Cada material assume um determinado valor simbólico e esotérico no conjunto, que se formaliza a partir de ações e práticas performativas e ritualísticas como rasgar, ligar, cozer, tecer, juntar, abrir, cortar ou secar.
Modelados no corpo, modelos para o corpo, marcados pelo corpo, próteses do corpo ou simulacro de partes do corpo, os objetos preciosos e quase místicos de Maria José Oliveira são tão excêntricos, irregulares e imperfeitos como o próprio corpo.
Susanne Themlitz combina a escultura, a instalação, a pintura, o desenho e o vídeo para criar uma linguagem pessoal, uma imagética singular e um microcosmos particular.
Explora a plasticidade sensorial das matérias-primas, usando materiais tão distintos como barro, madeira, bronze, fibra de vidro, cimento, roupas, sapatos, funis, tubos de alumínio ou baldes de plástico, e prestando peculiar atenção às texturas, superfícies, fissuras e cromatismos que estimulam fortemente os sentidos. Encena paisagens orgânicas, habitats precários ou figurações insólitas que destacam a ambiguidade das relações entre o natural, o humano e o animal; e que evocam também a dimensão da experiência emotiva do sonho e das narrativas da infância, fluindo livremente entre o real, o imaginado e o simbólico.
Propõe realidades, geografias e atmosferas alternativas, profundamente inventivas e subjetivas. Os seus lugares, personagens e elementos parecem longinquamente reconhecíveis, conectando-se a um estado primordial ou ao subconsciente. Pertencentes a uma espécie pressentida na mitologia, na literatura e nas estórias de embalar, criaturas híbridas, mutantes, lendárias, inquietantes, fantásticas, grotescas, metamórficas, trágicas e trocistas, alimentam o questionamento identitário da obra enquanto alter-ego da artista ou representação de uma humanidade surrealista, complexa e enigmática.
O universo de Isabel Carvalho constrói-se entre as artes visuais e a escrita, centrando-se na linguagem e no seu potencial criador e transformador. O seu trabalho desenvolve-se através do desenho, pintura, escultura, instalação e performance, mas também por meio da literatura, edição de livros, revistas, blogues e websites, cartazes e publicações de artista. Eliminando fronteiras entre o erudito e o popular, abraça as ideias de amadorismo, desapropriação autoral, encontro, troca e colaboração, às vezes ficcionando-as com recurso a heterónimos, nomeadamente a Clara Batalha.
Carvalho apoia-se no registo diarístico de acontecimentos banais, nos jogos de palavras e nos anagramas. Explora a linguagem enquanto construção cultural, estando particularmente atenta à comunicação não-verbal, ao desejo e ao erotismo nas identidades feminina e queer, ao cuidado do outro, à ecologia, à economia e à política.
A autogestão faz parte de uma prática de intervenção continuada de Isabel Carvalho na criação de territórios independentes, sobretudo na e a partir da cidade do Porto, Portugal. Engloba a autopublicação, a gestão e programação de espaços expositivos, a organização de residências e cozinhas comunitárias, a realização de concertos de música e spoken word ou a criação e manutenção de plataformas digitais, entre outras ações poéticas e concretas.
Na genealogia da pop art, os trabalhos iniciais de Clara Menéres suscitaram polémicas e provocações no meio artístico de um país ainda mergulhado na ditadura. Referiam-se explicitamente, em figurações espetaculares, de detalhe hiperrealista, escala real e cromatismos intensos, ao encobrimento da prostituição infantil, ao desembarque constante de jovens soldados mortos oriundos das trincheiras da Guerra Colonial ou à subalternização da sexualidade e das condições de vida das mulheres num país com um machismo dominante.
O combate feminista ao patriarcado continuará patente no período pós-revolucionário português, e prosseguirá mesmo com a organização, em 1977, de uma importante exposição de artistas mulheres ou com a produção de obras que homenageavam o corpo feminino, convocando o seu tratamento mítico-religioso em cultos milenares ligados à fecundidade e aos ciclos da vida.
A abordagem à ritualização do sagrado intensifica-se em 1980, quando uma revelação de natureza mística leva Clara Menéres a iniciar um trabalho menos provocatório, antes focado num essencialismo formal e material. Em 1987 produz uma série de obras em pedra e luz. Fortemente sensoriais, exploram as ideias de transcendência e êxtase, fazendo confluir a natureza bruta e não polida da pedra mármore com a fosforescência lumínica e tubular do néon.
Em O prazer é todo meu, Patrícia Garrido apresenta uma série de objetos sensualistas modelados a partir do seu próprio corpo, cobertos com os tons e brilhos luxuriantes da sua maquilhagem. Inicia aqui uma pesquisa identitária e afirmativa que também desdobrará em instalações, objetos e vídeos. Partindo sempre do seu universo pessoal e vivencial, a artista executará um trabalho contínuo de recoleção de materiais quotidianos encontrados, que lhe interessam apenas “na medida em que trazem consigo um pedaço de vida real”, reordenando-os e transformando-os em volumes de forte presença escultórica, como cubos comprimidos ou pavimentos expandidos.
Patrícia Garrido dedica-se ainda, durante todo o seu percurso, a obsessivos processos de registo, medição, quantificação e repetição, enumerando tudo o que ingeriu durante duas semanas, todas as roupas que possuía numa determinada época ou a quantidade de passos que perfazia dentro de casa até completar um quilómetro. Eminentemente performático e sugestivo, o seu trabalho aciona conceitos abstratos e matemáticos como geometria, plano, módulo ou distância. Partindo sempre da ideia de si e do seu corpo como medida das coisas, a artista assume as suas experiências físicas, subjetivas e intelectuais no atelier, na sua casa ou na dos amigos, como tema fulcral do seu trabalho.
Cruzando a escultura, a instalação e a arquitetura, as obras de Fernanda Fragateiro dialogam com os espaços museológico, público, natural ou paisagístico que ocupam. Estabelecem relações de escala, ambiente, matéria, equilíbrio e narrativa com os elementos circundantes e orientam ações performativas como entrar, caminhar ou sentar. Articulam elementos construtivos e materiais pobres e pesados como madeira, gesso, cimento, tijolo e alumínio, com superfícies lisas, espelhadas, polidas e cromadas e propõem, na sua extrema economia e rigor formais, a valorização do seu fundamento concetual. “Eu quero que o material, a terra, a pedra, a madeira, sejam conteúdo. (...) Quero que o material esteja o mais próximo possível da ideia, do pensamento”, afirma a artista.
Se alguns dos seus projetos resultam de colaborações diretas com artistas, arquitetos paisagistas ou performers, outros têm como ponto de partida a investigação crítica e política sobre o trabalho de autores, essencialmente arquitetos e designers, que marcaram ruturas, inflexões e fracassos ideológicos na história do modernismo. Esse enquadramento é reforçado por uma referência à ideia de biblioteca e à constante utilização de livros, frequentemente edições raras selecionadas pela relevância do seu conteúdo tanto quanto da sua forma.
A fotografia de Patrícia Almeida nasce da literatura romântica, da música pop/rock e das contraculturas urbanas, repertório vivencial e estético que determinou a fixação das suas imagens. Observadora atenta da realidade contemporânea e disponível para a sua experiência sensível, realizou extensas séries documentais de enorme consistência plástica e intensa subjetividade.
Interessou-se pelo imaginário urbano, tematizando a arquitetura, os espaços públicos, os estilos de vida, as pessoas e as gestualidades simultaneamente específicas e globais. Em “Portobello” registou a iconografia subjacente ao fenómeno do turismo de massas que ocorre no Verão nas estâncias balneares do Algarve, no sul de Portugal, revelando-a através de um exotismo quase panfletário, expondo estereótipos e aspirações de consumo: os cenários normatizados, a felicidade programática das famílias e a erotização de corpos jovens e bronzeados. Realizada em festivais de música, “All Beauty Must Die” retrata a atmosfera idílica da juventude, a sua pulsão trágica e melancólica, a sua irreverência e liberdade, a sua candura e desconcerto.
Reagindo a encontros ora fortuitos ora provocados, Patrícia Almeida criou corpos de imagens que friccionam e especulam sobre as fronteiras do real e do irreal, do documental e do ficcional, do político e do poético.
O trabalho de Gabriela Albergaria propõe uma cosmovisão que se baseia na primazia da natureza e na necessidade do seu conhecimento, pesquisa, revitalização e reconstrução cultural. Através de meios como a escultura, a instalação, a fotografia e o desenho, as suas obras propõem a reparação e a cura de um ecossistema vegetal fragilizado por um processo de sistemática destruição. Rebate a finitude dos elementos naturais com a potência criadora e laboratorial da arte. Recria composições em que desenhos completam ou ficcionam partes omissas de fotografias de paisagem e esculturas que reconstroem árvores já mortas ou condenadas à remoção.
Gabriela Albergaria destaca, coleta, agrupa, inventaria, cataloga e manipula espécimes da natureza, salientando e tornando visível a sua diversidade. Utiliza plasticamente cores, formas e representações dos seus elementos constituintes, transformando-os e descontextualizando-os para narrar uma experiência sensorial e subjetiva, mas também estética e política da paisagem. Interessa-se pela ecologia, pela história da jardinagem e da domesticação da natureza, pela botânica e pela arquitetura de paisagem. Orientada por uma visão crítica dos processos históricos de apropriação, exploração e aculturação do natural, Gabriela Albergaria apela subliminarmente a uma união orgânica com o vivo e a natureza.
A filmografia recente de Filipa César reflete sobre a história contemporânea de Portugal, em particular sobre as marcas e representações da ditadura, da opressão e do colonialismo. Examina a história dos acontecimentos políticos através da sua representação ideológica nos discursos e nas imagens, em particular daqueles que, produzidos como contraponto às narrativas oficiais, veicularam espaços de resistência e de liberdade.
Alguns dos seus filmes exploram aspetos ficcionais do cinema documental, debruçando-se sobre a dissidência e a invisibilidade dos corpos não normativos durante o regime politico autoritário e conservador que vigorou de 1933 a 1974, como nas histórias de passadores que ajudaram desertores e ativistas a fugir do país na fronteira de Melgaço ou de mulheres homossexuais que foram desterradas para um campo de trabalhos forçados em Castro Marim.
Filipa César investiga também a história da luta e do cinema de libertação na Guiné-Bissau, procurando dar visibilidade ao seu projeto emancipatório, anticolonial, coletivo, etnográfico e de vanguarda através da imersão nos seus arquivos visuais e sonoros. Incorporando criticamente algumas das suas passagens em filmes-arquivo, criando as condições para o restauro das películas e garantindo a sua projeção e discussão em diferentes localidades, dentro e fora da Guiné, Filipa César procura reativar e reinterpretar no presente as utopias do passado.
Maria Keil foi uma “operária da arte”, adepta de formatos colaborativos e da ideia de integração das artes. Dedicou-se a expressões artísticas como a pintura, o azulejo, a ilustração, a gravura, a tapeçaria, a cenografia, o design gráfico ou de mobiliário.
Começa a colaborar com Francisco Keil do Amaral, arquiteto e marido, antes de ingressar no Estúdio Técnico de Publicidade, onde trabalhará em conjunto com outros artistas modernistas. Integrará a partir daí o movimento de renovação do design em Portugal, que seria cooptado pelo regime autoritário para o impulso modernizador do país durante os anos trinta e quarenta do século XX. Maria Keil realizará inúmeras encomendas para os organismos do Estado, colaborando na promoção do turismo – do desenho de guias à decoração de pousadas – e na produção da museografia dos pavilhões portugueses em exposições e feiras internacionais. Colabora depois no programa de construção do Metropolitano de Lisboa, para o qual produzirá o revestimento mural de inúmeras estações de metro, em inovadoras composições gráficas, geométricas e abstratas, cujas subtis variações cromáticas e de padrão estabelecem um profundo diálogo com a arquitetura. Este trabalho de arte pública assume uma escala sem precedentes e concorrerá determinantemente para a revitalização, renovação e revalorização da azulejaria em Portugal.
Muito embora com visibilidade intermitente, o trabalho de Maria José Aguiar tem vindo a integrar episódios de releitura da produção contemporânea portuguesa levados a cabo nas últimas décadas. Esta inserção em grandes exposições temáticas tem valorizado a sua obra salientando-lhe o experimentalismo, a liberdade e irreverência, mas também destacando a sua importância precursora à luz das novas figurações dos anos setenta e dos estudos e discursos de género.
Ancorada na representação do corpo sexuado, manipulado, sobreposto e fragmentado em rigorosas composições formais, a pintura de Maria José Aguiar assume uma brutal pulsão erótica. Expressa-se politicamente contra uma visão moralizante e subjugada da mulher na representação do seu corpo e do seu desejo, usando a representação explícita do sexo e da genitália enquanto vocabulário crítico e simbólico. O pénis protagonista esvazia-se progressivamente num código visual formal, originando um padrão gráfico e ornamental divertido e caricatural que se desenvolve e repete em cores puras e planas e em composições dinâmicas. A sua obra é irónica, desobediente e contestatária relativamente ao meio profundamente conservador, clerical e patriarcal em que se desenvolve, mas é também crítica da história da arte, citando e rasurando recorrentemente alguns dos seus autores masculinos dominantes.
Ana Vidigal é uma recolectora obsessiva. Junta materiais herdados, “achados e perdidos” em casas, sótãos, lojas ou feiras, objetos cuja história a artista conhece mas a obra não revela. Esta é a base do seu arquivo do mundo, um inventário imagético e técnico que é o epicentro e o caldo a partir do qual desenvolve o seu trabalho de atelier, um trabalho manual altamente disciplinado pelo pensamento.
Respiga revistas nacionais e estrangeiras dos anos sessenta e setenta, bandas desenhadas, fotonovelas, álbuns de lavores e moldes de bordados e crochets, livros infantis, iconografia de moda e do cinema, bonecos e bonecas, cartas, carimbos, caixas e pacotes. Este sem número de sedimentos e despojos da vida de todos os dias são compulsivamente guardados e eventualmente recortados e reconfigurados em pinturas-colagem que, apesar da diversidade de formatos, texturas, cromatismos e técnicas, assumem a utilização da cola como metodologia central e aglutinadora.
Os seus títulos são sugestivos, pistas ora poéticas ora irónicas que se agregam à leitura da obra e das pequenas frases que nelas inscreve, apelando a uma extrema subjetividade. Revelam o seu interesse pelos “estragos emocionais” relacionados a eventos ora íntimos ora políticos, destacando a tensão entre o desejo de autonomia do feminino e o lugar que a sociedade lhe tem reservado.
Nascida no início do século XX e autodidata nas artes visuais, Ofélia Marques integra o movimento modernista português e acompanha de perto os seus desenvolvimentos internacionais ao lado de Bernardo Marques, companheiro durante uma parte significativa do seu percurso. Sendo essencialmente reconhecida pelo trabalho em pintura, foi no desenho que a sua prática se mostrou mais inovadora. Colaborou com a imprensa periódica, ilustrou livros e criou bandas-desenhadas infantis, género em que foi precursora. Será, no entanto, nos seus múltiplos autorretratos psicológicos e na série de retratos dos amigos, artistas e escritores caricaturalmente imaginados enquanto crianças, que o seu trabalho adquire uma maior consistência técnica e reflexiva. A sua obra erótica, só postumamente apresentada, virá mesmo revelar uma faceta mais transgressora, irreverente, cosmopolita e experimentalista do trabalho. A preto e branco ou em cromatismos expressivos, luminosos e contrastantes, em tinta-da-china, grafite, lápis de cera, pastel ou guache, Ofélia Marques testemunha cenas íntimas e homoeróticas femininas. Captadas em luxuriantes ambientes de encontros sexuais, revelam, de forma subtil e empática, relações de dominação e subjugação das quais a presença do gato surja talvez como metáfora.
O trabalho de Rosa Carvalho revisita a pintura clássica para fazer a releitura de uma das suas temáticas mais recorrentes: a representação da mulher e do corpo feminino na história da arte. Conjuga formatos como a paisagem, a pintura religiosa, mitológica, sublime e onírica com as influências surrealistas, maneiristas, barrocas e rocaille, numa obra intelectual, crítica e irónica.
Na série “Paisagens de Interior”, Rosa Carvalho retoma pinturas icónicas de mestres incontestados como Rembrandt, Boucher, Velásquez, David e Goya, que representam figuras femininas nuas, em poses delicadas e diáfanas. Reencena-as rigorosa, laboriosa e virtuosamente excluindo, no entanto, a presença do corpo feminino, assim frustrando o desejo carnal e o consumo voyeurista. A libertação do elemento central da pintura e a sua consequente saída de cena oferece uma vida própria ao modelo, emancipando-o como mulher. Com um propósito e um desígnio para além da disponibilidade para ser passivamente olhada, ela é finalmente “desobjetificada”. O jogo da ausência como presença corresponde também ao da encarnação como desencarnação, temática simultaneamente religiosa e de género que Rosa Carvalho radicalizará mais tarde em pinturas hiper-realistas de comida, e notadamente em Posta, na qual a pintura se faz literalmente carne.
Autodidata, Menez pinta como aprendeu: sozinha e em viagem. A sua obra é um solilóquio, uma enigmática e eterna conversa consigo mesma que o observador pode contemplar sem, no entanto, nunca verdadeiramente decifrar.
A sua pintura cedo transita da abstração para a figuração. Cria ambientes que são complexas narrativas em abismo, espaços que se desmultiplicam em outros espaços através da evocação sucessiva de portas atrás de portas ou de quadros dentro do quadro. Esses lugares de reflexão, introspeção, leitura e trabalho, e em particular o atelier, são o epicentro e objeto da pintura. A construção pictórica desses cenários é rigorosa e programática, estabelecendo-se a partir de grelhas geométricas e abstratas que demarcam e organizam planos, perspetivas e volumetrias. A figura humana, quase sempre feminina, solitária e melancólica, é introduzida como modelo, como reflexo no espelho ou como sujeito da própria pintura que é ali mesmo pintada. A gestualidade das mãos e rostos representados adensa a teatralidade e a intimidade das cenas, cujo ponto de fuga se encontra, muitas vezes, no exterior.
A pintura erudita e metafísica de Menez evoca uma atmosfera onírica e entorpecida, uma interioridade só sua que é silenciosamente modelada, em inúmeras camadas, gradações e variações tonais, pela qualidade diáfana da cor e da luz.