Vigiar, Esconder e Punir

Uma «história controversa» a partir da série «22474», do ano 2000, de José Luís Neto.
Leonor Nazaré 24 nov 2017 3 min
Novas leituras

No início do século XX, nas penitenciárias portuguesas, o uso obrigatório do capuz impedia a identidade e o reconhecimento entre prisioneiros. José Luís Neto amplia os rostos tapados de cada um (10 casos) a partir do negativo duma fotografia de Joshua Benoliel realizada em 1913, aquando da cerimónia oficial que pôs fim ao uso obrigatório do capuz nas penitenciárias, fazendo sentir, mais do que ver, o encarceramento físico e psicológico extremo a que o dispositivo correspondia.

Se aprisionar na solidão e no anonimato total causa viva repugnância ao homem contemporâneo, a exposição voluntária da vida privada nas redes sociais coloca-o, aparentemente, no extremo oposto da vivência comunitária: mas esses dois extremos tocam-se na condição “prisional” da vigilância permanente.

O trabalho de J. L. Neto e o livro de Foucault (Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão, 1975) motivaram o título deste texto e promoveram o encontro entre o princípio e o final do século, que toda a organização expositiva da mostra da Coleção Moderna quis proporcionar. Nela se propõem obras, documentos e trabalhos que ficam na fronteira entre as duas tipologias, assim como alterações pontuais da cronologia geral, por razões fundamentadas na natureza, no conceito e nos referentes da obra. É o caso deste trabalho.

 

José Luís Neto, Sem título (da série 22474), 2000. Inv. 01FP352
José Luís Neto, Sem título (da série 22474), 2000. Inv. 01FP359
José Luís Neto, Sem título (da série 22474), 2000. Inv. 01FP355

 

Como repara Semedo Moreira, nas reportagens televisivas, o sucesso e a beleza são exibidos, tanto quanto a culpa do arguido ou do preso o levam a esconder o rosto. Mas a obrigatoriedade de o fazer no interior da prisão nega sociabilidade e individualidade, indispensáveis à recuperação do recluso.

A História dos sistemas prisionais adotados em Portugal a partir de modelos importados, nomeadamente o sistema de Filadélfia ou Pensilvano (combinando o panótico com o sistema radial de isolamento constante e vigilância permanente) e o sistema auburniano (que combina isolamento com atividades diurnas conjuntas) explica a história das disposições penais adotadas em Portugal, por exemplo em 1852, na reforma de 1867 e na Penitenciária de Lisboa em 1885.

O trabalho de Foucault elabora extensamente a questão biopolítica da normalização e do controlo, fazendo a História da prisão e das punições da criminalidade como instrumento de modificação do sujeito, no sentido da sua «utilidade» social: moldar a vontade, apagar a memória, esbater e alterar a identidade, anular o olhar do outro como espelho. Torna-se óbvio o confronto com a situação contemporânea de exposição permanente (aparentemente desejada, on line, e imposta pela georreferenciação de todos os movimentos, atos de cidadania e de consumo). O debate sobre essa forma de «servidão voluntária» em situação de aparente liberdade, trouxe à reflexão a atualidade que nela se reconhece.

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Nesta rubrica, artistas, curadores, historiadores e investigadores convidados refletem sobre a Coleção do CAM, explorando diferentes perspetivas e criando relações por vezes inesperadas. Partindo de uma obra, de um artista ou de uma temática específica, estes textos propõem novas formas de ver e pensar a Coleção à luz do contexto histórico atual.

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