Vigiar, Esconder e Punir
No início do século XX, nas penitenciárias portuguesas, o uso obrigatório do capuz impedia a identidade e o reconhecimento entre prisioneiros. José Luís Neto amplia os rostos tapados de cada um (10 casos) a partir do negativo duma fotografia de Joshua Benoliel realizada em 1913, aquando da cerimónia oficial que pôs fim ao uso obrigatório do capuz nas penitenciárias, fazendo sentir, mais do que ver, o encarceramento físico e psicológico extremo a que o dispositivo correspondia.
Se aprisionar na solidão e no anonimato total causa viva repugnância ao homem contemporâneo, a exposição voluntária da vida privada nas redes sociais coloca-o, aparentemente, no extremo oposto da vivência comunitária: mas esses dois extremos tocam-se na condição “prisional” da vigilância permanente.
O trabalho de J. L. Neto e o livro de Foucault (Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão, 1975) motivaram o título deste texto e promoveram o encontro entre o princípio e o final do século, que toda a organização expositiva da mostra da Coleção Moderna quis proporcionar. Nela se propõem obras, documentos e trabalhos que ficam na fronteira entre as duas tipologias, assim como alterações pontuais da cronologia geral, por razões fundamentadas na natureza, no conceito e nos referentes da obra. É o caso deste trabalho.
Como repara Semedo Moreira, nas reportagens televisivas, o sucesso e a beleza são exibidos, tanto quanto a culpa do arguido ou do preso o levam a esconder o rosto. Mas a obrigatoriedade de o fazer no interior da prisão nega sociabilidade e individualidade, indispensáveis à recuperação do recluso.
A História dos sistemas prisionais adotados em Portugal a partir de modelos importados, nomeadamente o sistema de Filadélfia ou Pensilvano (combinando o panótico com o sistema radial de isolamento constante e vigilância permanente) e o sistema auburniano (que combina isolamento com atividades diurnas conjuntas) explica a história das disposições penais adotadas em Portugal, por exemplo em 1852, na reforma de 1867 e na Penitenciária de Lisboa em 1885.
O trabalho de Foucault elabora extensamente a questão biopolítica da normalização e do controlo, fazendo a História da prisão e das punições da criminalidade como instrumento de modificação do sujeito, no sentido da sua «utilidade» social: moldar a vontade, apagar a memória, esbater e alterar a identidade, anular o olhar do outro como espelho. Torna-se óbvio o confronto com a situação contemporânea de exposição permanente (aparentemente desejada, on line, e imposta pela georreferenciação de todos os movimentos, atos de cidadania e de consumo). O debate sobre essa forma de «servidão voluntária» em situação de aparente liberdade, trouxe à reflexão a atualidade que nela se reconhece.