Raphael Fonseca: «Antes de mudar qualquer coisa, você tem que se olhar no espelho».
Quais são os maiores desafios e as maiores oportunidades para os curadores de arte hoje em dia?
A resposta a essa pergunta depende muito de que local do mundo estamos falando. Acho difícil assim uma resposta ampla e universal, porque os desafios e as oportunidades variam de país para país, de cidade para cidade, de pessoa para pessoa, de cada história familiar, etc. Sinto que um grande desafio é vivermos num mundo tão rodeado por imagens – celular, smartphones, fotos, vídeos, YouTube, etc.
Um bom desafio para um curador que se interessa por fazer exposições, é pensar como criar e orquestrar alguma coisa que ainda desperte o interesse do público. Eu acho que esse é talvez o maior desafio deles – como fazer uma coisa que faça sentido para o público, seja ele especializado ou não especializado.
Agora, no campo das oportunidades, por outro lado, o facto de vivermos nesse mundo tão rodeado por imagens gera a oportunidade de criar de maneira muito mais expressa, ou seja, parece mais fácil pesquisar artistas hoje em dia, parece mais fácil contactar pessoas e parece ser mais viável criar projetos efémeros com o uso da internet.
Em certa medida, essa conexão virtual possibilita mais oportunidades de bolsas, de viagens, de se poder candidatar a coisas, então acho que são dois lados da mesma moeda. Um lado de como fazer alguma coisa que seja relevante para as pessoas, e que atraia o público devido a esse excesso, mas também como se valer dele para criar projetos, que é uma coisa ímpar na história.
Quais são os maiores obstáculos à mudança das instituições culturais?
Acho que um obstáculo grande das mudanças é que, antes de mudar qualquer coisa, você tem que se olhar no espelho. Eu acho que a instituição, como qualquer ser humano, deveria se olhar e passar por uma autoanálise e, num segundo momento, entender o que ela quer mudar, o que ela não quer mudar, o que pode mudar e o que não consegue mudar também.
É difícil, mas não impossível, pedir mudanças muito radicais num organismo que tem 30, 40, 50 anos de funcionamento. E, se faz sentido esforçar-se por isso, as mudanças não vão acontecer em um ou dois anos. O que acontece muito neste processo é um desejo de descolonização expressa que tem de vir mesmo a conta gotas e a acontecer em ciclos de mais tempo, em vez de desejos de mudar uma instituição inteira e rever uma história colonial, elitista, de privilégio, em dois, três anos. Entender que a mudança, e essa fase do espelho, se dá diariamente, e não por um ímpeto de uma pressão externa, de uma pressão de redes sociais ou uma pressão de um movimento.. É uma mudança que acontece como se fosse um jogo de tabuleiro, para avançar qualquer casa há de se estar muito atento às instruções do jogo.
O desejo da velocidade expresso na mudança é um grande obstáculo e, para a mudança acontecer, as pessoas que ocupam cargos de diretoria precisam passar por essa mesma fase do espelho. Acho que as duas coisas precisam caminhar juntas.
Como é que países como Portugal podem começar um caminho de descolonizar e refletir sobre as suas heranças coloniais?
Não sei, porque eu não vivo aqui. Eu sou casado com um português, viajo para cá frequentemente, fiz projetos aqui, vou fazer até um projeto para o ano que vem, mas eu tenho dificuldade em responder a essa pergunta objetivamente.
Reconhecer a história colonial do país, voltar para esta fase do espelho, já é um princípio. Entender as narrativas de uma certa história da arte nacional – quais as pessoas que nunca tiveram espaço e acesso também é muito importante. Pensar também como rever esse passado colonial, não só por si, mas em diálogo com outros espelhos levantados pelos lugares que foram colónias portuguesas também é muito importante. Penso que é um esforço de falar menos e escutar mais.
Acho também importante fazer isso numa perspetiva transhistórica, no campo da curadoria e das artes visuais. Seria muito bacano se Portugal pensasse projetos de curadoria e artísticos que não olhassem apenas as várias vozes contemporâneas vivas, mas também se valesse de artistas, objetos, de cultura material, de documentos que se dão nesses mais de 500 anos, de que datam as primeiras invasões.
É muito bacano pensar em coleções, como a do Museu do Oriente, a do Museu Nacional de Arte Antiga ou a da Fundação Calouste Gulbenkian, que têm objetos que ajudam a contar o regime da colonização, que muitas vezes podem ser consideradas pelas pessoas como troféus de guerra, e que, dentro desse contexto expositivo, poderiam colaborar com uma narrativa mais densa e complexa do que foi esse amplo império lusitano, do Japão até ao Brasil, passando por tantos outros lugares. O dia em que, enquanto projetos de curadoria e projetos intelectuais, se conseguir reunir também diversos tempos num projeto de exposição, o público ganha e a noção de “nação portuguesa” ganha também, na medida em que consegue enxergar melhor as chagas da sua história e projetar outros futuros.
Qual é a primeira memória que o Raphael tem de visitar a Fundação Calouste Gulbenkian?
A primeira memória é interessante. No final de 2009, eu estava a fazer um mestrado sobre o Francisco de Holanda, consegui juntar dinheiro e fazer a minha primeira viagem pela Europa. Saí do Brasil em novembro e fiz um tour que começava por Portugal e que seguia para Espanha, França, enfim, até chegar a Amesterdão. E vim aqui um dia, logo no começo, visitar a coleção e, para mim que trabalhava com o Renascimento naquela época, foi muito importante e foram uma série de dias – um dia aqui, outro no Museu Nacional de Arte Antiga. Lembro-me de adorar a coleção e, mais do que isso, adorar a presença da madeira em todos os espaços, incluindo nas salas expositivas. Naquele momento, não tinha nenhum desejo de ser curador.
É um prédio muito bonito, com muitos desafios para alguém que pense um projeto, e acho uma coleção incrível.Foi muito bonito ver isso e aprender com; e mais do que com a coleção, fiquei muito impressionado com o jardim, os patos, a água e as árvores. Um ambiente muito convidativo, o silêncio de estar aqui… realmente é um bom exemplo de uma integração entre um espaço e uma ideia de paisagismo.