«Quando nos focamos em problemas locais, descobrimos que estão ligados a problemáticas globais.»
Como te sentes por teres a tua primeira exposição individual na Europa a decorrer no CAM, em Lisboa?
Estou muito feliz. Como é a minha primeira exposição a individual, era muito importante a escolha do sítio – em primeiro lugar, onde a realizar, e em segundo, com quem a realizar. Fico muito feliz e orgulhosa que tenhas sido tu a pedir-me para a fazer aqui, no CAM.
É a minha primeira vez em Portugal e, ao início, tinha a imagem de que era um lugar muito distante, mesmo no contexto da Europa. Já tinha tido a experiência de estudar no estrangeiro, em Inglaterra, portanto tinha algumas ideias preconcebidas, mas como é a minha primeira vez aqui, tenho a sensação de estar a enfrentar o desconhecido, de não saber o que esperar, de empolgamento.
Consigo sentir a longa história deste país e estou ansiosa por saber como é que a peça que trouxe de Okinawa vai ser recebida. Tenho a impressão, ainda algo superficial, que Portugal, pela sua localização no sul da Europa e pelo seu povo quente e acolhedor, é surpreendentemente parecido com Okinawa.
Estou curiosa para ver se haverá alguma afinidade entre os portugueses e o meu trabalho, sendo que também venho do sul, e se, talvez, essa afinidade possa ser o que tornou este encontro possível.
É também a primeira vez que me encontro contigo. Conheceste o meu trabalho antes de me conheceres a mim, mas tens uma leitura e compreensão das minhas obras que é tão profunda, sem nunca nos termos conhecido…
Fico muito feliz que o meu trabalho tenha conseguido comunicar assim, que lhe tenha dito tanto. Foi o trabalho que me trouxe aqui, que me proporcionou este encontro e isso deixa-me feliz.
Não é que encontros assim não possam acontecer naturalmente. Mas, especialmente porque a minha obra que está a ser exposta, Mud Man, não é legendada, tinha-me questionado se seria mesmo possível que ela fosse além das palavras, que criasse um entendimento mútuo. Por isso, ver isso a acontecer faz-me confiar que o que faço tem a capacidade de aproximar as pessoas e deixa-me muito comovida.
O teu trabalho refere-se bastante à memória e à identidade okinawanas. Achas que esta perspetiva única está relacionada com as questões sociais e ecofeministas com as quais lidamos atualmente?
A maior parte do meu trabalho é filmado em Okinawa e tem como foco Okinawa vista pelos olhos do seu povo mas, na realidade, as temáticas que abordo são globais.
Com cada novo filme, apercebo-me cada vez mais que quando nos focamos em problemas locais, descobrimos que estão ligados a problemáticas globais. O colonialismo é um tema ubíquo. Tenho plena consciência de que não se trata de um problema local ou transitório.
No meu outro trabalho em exposição, Seaweed Woman, o mar emancipa-se e emerge para reivindicar a terra. Atualmente, destroem-se recifes de coral e toma-se terra para expandir áreas comerciais e para construir novas bases militares americanas, por uma questão de sobrevivência, mas sinto que, pelo menos em Okinawa, tudo isto tem origem na ocupação americana.
Os EUA são um problema, as bases militares americanas são um problema e, por isso, tendo a focar-me nas dificuldades com que quem vive em Okinawa tem de lidar. Nesse sentido, recentemente, comecei a investigar o cinema western e apercebi-me de que a questão do expansionismo americano também está presente em Okinawa.
Nos filmes western, os indígenas americanos são perseguidos, expulsos das suas terras em nome da expansão territorial – isto é o que está a acontecer em Okinawa. O espírito pioneiro americano está a ser assimilado pelo povo de Okinawa. Agora, os okinawanos estão a começar a destruir a própria terra, e penso que o mesmo estará a acontecer um pouco por todo o mundo.
Recentemente tenho estado a reler Hannah Arendt, a estudar o que aconteceu na Europa nos séculos XVIII e XIX. Sinto mesmo que a história se está a repetir.
É por isso que, no que toca aos temas que escolho para as minhas obras, mais do que apenas retratar o que está à nossa frente hoje, estou a tentar olhar mais para a forma como as coisas se estão a repetir.
É um pouco como a natureza.
A natureza… Sim, concordo.
Esta articulação entre assuntos políticos e a relação com a natureza é, no fundo, uma questão de continuidade.
O desejo humano de subjugar a natureza em nome do crescimento económico é uma coisa poderosa.
O que tem acontecido de estranho em Okinawa, ultimamente, é que pessoas que amam a sua terra natal, que escolheram permanecer em Okinawa, começaram agora a destruir a própria terra para sobreviver, por haver uma falta de outros empregos de que possam viver.
Este tipo de comportamento paradoxal está a surgir lá e, provavelmente, pelo mundo inteiro, por isso, apesar de estar a filmar em Okinawa, não tenho dúvidas que qualquer pessoa, independentemente do lugar, será capaz de ter empatia, de encontrar um ponto em comum.
No que toca ao ecofeminismo… Acho que muitas destas questões têm certamente um cariz ecofeminista, mas os meus pensamentos acerca do assunto ainda não estão bem organizados, não sei bem como os verbalizar.
Só sei que, efetivamente, a maioria dos trabalhadores que estão a destruir as ilhas são homens, e a maioria das pessoas envolvidas no movimento de resistência são mulheres idosas. Neste sentido, sinto que o conceito toma uma forma tangível, uma verdade evidente.
Produzes, principalmente, filmes e instalações audiovisuais. Como é que integras as complexidades da performance, do som e da poesia nas tuas narrativas artísticas?
Nunca tive um processo cinematográfico estruturado no que toca ao meu trabalho, nunca escrevi guiões ou fiz storyboards. Por exemplo, no início, durante uma fase de pesquisa, fui de encontro a uma voz. Estava a entrevistar um senhor de idade que viveu a Batalha de Okinawa, e de repente, a voz dele entrou pelo meu corpo adentro. Daí, nasceu uma imagem. E depois, filmei-a. Esta noite, vai haver uma sessão do meu filme Your Voice Came Out Through My Throat – foi esse o primeiro.
Quando ouvi este senhor a falar sobre a sua experiência da Batalha de Okinawa, de Saipan, senti a sua voz entrar no meu corpo e entranhar-se no meu estômago, onde a deixei crescer e fermentar, e depois, de repente, surgiu-me a imagem de um ramo de microfones, e não me deixou durante um ano inteiro, até que senti que não tinha alternativa senão filmá-la. Filmei-a mesmo sem saber exatamente o que significava, e isso tornou-se o meu filme seguinte, Sinking Voices.
Então, esse foi o teu primeiro trabalho em vídeo?
Foi o primeiro de ficção. Antes fazia arte performativa. Mas, por não conseguir realmente filmar essa voz dentro do meu estômago, tive de usar a ficção e a narrativa para o tornar possível.
Para isto, tirei uma licença de mergulho, treinei arduamente durante um mês, e quando finalmente consegui mergulhar e filmar o ramo de microfones, ali, no meio do mar, pensei: preciso de bolhas a sair do microfone! E soprei umas quantas bolhas à pressa. Do nada, pensei, «preciso de bolhas!», então soprei umas quantas e filmei.
Depois, quando achava que já tinha fechado essa peça, fiquei fascinada com a imagem de bolhas – desta vez, bolhas a emergirem do mar e a virem para terra, e a rebentarem uma a uma na floresta, pop, pop, pop, e cada uma dessas bolhas tinha uma voz dentro dela, e assim, no meio da floresta, nasce um coro.
Assim, o que era no início a voz solitária de uma pessoa só, ao ter-se transformado em tantas bolhas, tornou-se num coro, juntando as vozes de uma multidão. Isso acabou por ser um outro filme, Chorus of the Melodies. É mesmo assim – uma só narrativa, atravessando todo o meu trabalho, a ser revelada pouco a pouco.
Sim, vemos o mesmo em Seaweed Woman, em Mud Man e noutras obras.
Exatamente. Gosto de pensar nisto como uma forma de documentar imagens.
É uma ideia linda. Podes falar-nos um pouco do teu artista ou cineasta preferido, seja internacionalmente, no Japão ou em Portugal?
Gosto de muitos realizadores. Houve uma altura da minha vida em que estava muito deprimida, sobretudo em relação ao mundo das Belas-Artes, mas não só. O que me ajudou a ultrapassar esse período foi um filme do realizador grego Theo Angelopoulos.
Muita da sua obra foi filmada sob ditaduras, e por isso tem pouco diálogo, mas muita metáfora. Esse poder, de esconder significado à vista de todos, que as imagens conseguem ter, a força da metáfora – foi algo que me influenciou muito.
Os seus planos-sequência também. Fazem o tempo parecer muito real, muito valioso. Claro que são muito teatrais e bem planeados, mas quando filmamos durante períodos de tempo longos, conseguimos captar os atores a viver, nesse momento, autenticamente, o que faz com que o resultado final seja algo que não parece inventado. Isto teve uma grande influência num outro filme meu, Reframing.
E no que toca a realizadores portugueses, ouvi dizer que és fã do Pedro Costa?
Vi muito do trabalho do Pedro Costa, sim, não todo, mas bastante. O contraste entre luz e sombra… Ele mostra não só o belo, mas também a escuridão. Acho que isso, por si só, é belo.