«Quais são as vozes que não estão a ser ouvidas? Eu acho que esta é uma das questões da minha geração»

Carolina Almeida fala sobre a sua visão e as suas expetativas acerca do Conselho Consultivo Jovem, a representatividade dos públicos jovens nas instituições culturais e sobre a democratização destes espaços.
05 fev 2024 15 min
Conselho Consultivo Jovem

O que é que te fez querer participar no Conselho Consultivo Jovem (CCJ) e quais eram as tuas expectativas sobre o que ia ser o Conselho?

Eu estive muito tempo a estudar em Barcelona e aí eu senti que havia muitos sinais emergentes. Coisas como colaboração entre espécies, futuros, literacia de futuros, futuros descoloniais, descolonizados, conhecimento a ser descolonizado. Eram esses sinais que estavam a surgir que eu queria muito trazer quando voltasse a Portugal.

Quando cheguei, vi o anúncio da Gulbenkian. Pela descrição e pelo grupo de trabalho que se estava a formar e as intenções que estavam a ser colocadas, disse “É aqui que eu vou encontrar um grupo de pessoas que também irá cruzar disciplinas e encontrar estas interseções”. Queria encontrar estes mundos que existem nas interseções de disciplinas e que existem nas interseções de pessoas.

Não tinha muitas expectativas para além de ter em grande consideração a Gulbenkian enquanto casa. Sabia que esse nome traz muita bagagem. Ou seja, se isto está a acontecer aqui, é algo que irá provavelmente ser muito importante tanto para a reabertura do CAM como para uma re-imaginação da  Fundação Gulbenkian. E eu queria fazer parte desse grupo pela comunidade que se iria formar.

Qual é a tua relação com instituições culturais, em Portugal ou no estrangeiro?

É engraçado, depois de uma das sessões com a equipa do Live Arts, a Leopoldina (outra integrante do CCJ) disse: “Eu saio de casa por necessidades básicas e para visitar instituições culturais. Saio de casa para ver arte, para ver cultura, para assistir a concertos.” E é muito verdade para mim também! Depois de ela ter dito isso eu pensei: “De facto, a minha relação com centros culturais é quase a razão pela qual eu saio de casa.”

Desde muito nova que tenho um interesse genuíno na educação e na forma como nós conseguimos adquirir conhecimento. Instituições públicas, instituições de arte, cultura – tudo isso mostra mundos novos. E essa curiosidade leva sempre a espaços onde esse conhecimento é aberto ao público. Então é muito natural eu de repente pensar “Oh! Estou num museu. Pois, eu queria saber sobre isto: queria saber mais sobre dinossauros, ou queria saber mais sobre Van Gogh, ou o que seja”.

E mais em concreto, antes deste projeto, como era a tua relação com a Gulbenkian e com o Centro de Arte Moderna?

Ao Centro de Arte Moderna eu vinha muito a debates e conversas. Não sei se alguma vez cheguei a ver uma exposição do Centro de Arte Moderna. Não me recordo. A minha primeira relação foi através dos debates, muitas vezes até relacionados com ciência ou que cruzavam esses mundos.

Foi quando eu comecei a vir para a faculdade em Lisboa que comecei autonomamente e assiduamente a visitar estes espaços. Visitava muito o Jardim, um espaço espetacular! Mais recentemente, algo que fez uma disrupção inteira da imagem que tinha da Gulbenkian foi o Lisboa Criola no Jardim Gulbenkian. Eu senti “Está aqui! Isto é um sinal de que as coisas estão a mudar e que algo está para vir e que há novas narrativas a serem construídas”.

Eu quero muito fazer parte dessa narrativa. É uma das outras ligações que senti que o Conselho iria adotar: a construção de novas narrativas que inclui mais gente da periferia, da diáspora, etc.

E o que seria para ti uma instituição que respondesse totalmente às necessidades dos jovens? Ou seja, se fosse possível fazer tudo absolutamente perfeito, como seria essa utopia?

A utopia é a distopia para alguém. Portanto, se vamos criar uma instituição completamente cheia de jovens, alguém fica de fora. Mas se construíssemos uma ramificação da Gulbenkian exclusivamente para os jovens, penso que tem a ver com a energia. A energia tem de ser muito nova. As vozes têm de estar lá.

Nós temos que olhar para esse grupo específico e dar palco, dar uma plataforma. Só aí é que vamos conseguir colaborar e intervir de forma a que essas vozes sejam realmente incorporadas na estrutura e na cultura de uma organização, de forma a que essas lacunas não se voltem a repetir. Para que não se sinta que se está a excluir, de forma ativa ou inconsciente, um grupo muito específico de pessoas que vão ser o futuro duma nação.

E se esse futuro não tem acesso ou não sabe que tem acesso – porque às vezes não há acesso à informação –,  ficamos com um grupo de jovens com uma diversidade quase nula, de um certo grupo socioeconómico, etc. Isto quer dizer que a mensagem que estamos a passar não é apelativa a quem está nas margens da sociedade. E porquê? Porque temos uma história que põe em palco artistas que são altamente reconhecidos.

A Gulbenkian é vista como o “monstro das artes”, em que quem chega lá não precisa de mais nada. E normalmente não é reconhecida por dar palco a jovens, ou pelo menos essa é a visão cá de fora e é uma visão que nos magoa a todos. É isso que é preciso desconstruir.

A utopia seria uma Gulbenkian que não parece uma fortaleza. Que tem um Jardim à volta, mas que não é só sobre o Jardim. É sobre o que está dentro e escondido entre as árvores: arte e artistas que têm um espírito colaborativo, que querem ensinar. E também há esta ideia de querer alguém com 24 anos, mas com experiência de 50. Impossível! As pessoas aprendem, e vivem, e têm uma experiência.

Portanto, querer artistas génios também é algo que tem de se desconstruir e fazer um trabalho contínuo em que o artista não é só apoiado durante uma bolsa, mas regularmente fazer quase um check-up: Como é que isto está a correr? Quais são os contactos que eu posso fornecer para facilitar isto? Porque é que não correu tão bem? Porque é que agora já não ouvimos falar deste artista? Todas estas questões são postas na mesa. E mais importante, quais são as vozes que não estão a ser ouvidas? Eu acho que esta é uma das questões da minha geração.

O que é que achas que o teu percurso académico e pessoal vem acrescentar ao Conselho Consultivo?

Nós somos 9. E cada um tem um percurso imensamente diferente. Eu vim da biologia, como licenciatura, a sentir que havia uma muralha também. Portanto, esta questão de haver uma muralha quando as pessoas olham para a Gulbenkian, é algo que eu sentia quando estava dentro de outra muralha. Eu tentei sair da muralha e procurar saber como é que a podemos tornar numa membrana permeável, em que toda a gente pode contribuir e usufruir.

Vim da biologia e fui estudar design à procura desse mundo. Acabei por encontrar diferentes técnicas, formas de pensar, piscinas de pensamento em que uma pessoa mergulha e pensa “Há um mundo neste espetro e não é só acerca deste espetro, é também o que há dentro de cada palavra e sinal que existe neste mundo: há um universo lá dentro”. E isso foi uma realização enorme, porque durante muito tempo o meu mundo era ciência, e eu tinha uma intuição de que havia coisas para além da ciência e queria muito explorá-las. O design deu-me essa possibilidade.

Com as capacidades e ferramentas que a ciência me deu, trago um poder de síntese e de argumentação, que me ajuda bastante a fazer a ligação entre mundos. Acho que esse é o meu papel dentro do Conselho: ligar e descobrir as interseções e estes futuros que estão a surgir. Eu tenho sentido que isto vem do mestrado que eu fiz em design – design para futuros emergentes que trabalha muito com as comunidades através de intervenções localizadas e contextualizadas. Deu-me muitas ferramentas para lidar com universos que se ligam e que ficam complexos. É tornar o conhecimento abstrato numa coisa mais fazível, mais utilitária.

Carolina Almeida © Ricardo Lopes

Quais as tuas impressões da equipa, como está a ser trabalhar em conjunto?

A primeira fase foi descobrir cada um, individualmente. Como é que nos chamamos, se somos de Lisboa. Depois foi tentar encontrar como é que cada um se encaixa neste grupo, porque nós começamos a pensar e a ter quase uma inteligência coletiva. Por exemplo, o Joel diz uma coisa, a Ema diz outra e eu uno os dois e digo “então, e se fosse isto?” É como fazer uma receita.

Nós já estamos aqui a cozinhar ideias para que o CAM as consiga utilizar e cada um é um ingrediente, cada um é uma técnica. Encontrar um uníssono dentro do que pode ser um grande caos.

Para além do Live Arts, já estiveste com a equipa das Coleções, das Exposições, da Curadoria… O que é que gostaste mais? Quais são as tuas impressões dessas sessões com as equipas?

A que eu gostei mais foi esta última, com o Live Arts. Ainda estou assim meio espantada e efervescente.

As equipas são fantásticas, muito abertas. Nós fazemos questões e desafiamos mesmo, somos críticos mas bastante flexíveis também. Começamos a aperceber-nos de que dentro de uma instituição há motivação para fazer, mas são centenas de pessoas que têm que se mover em torno de uma ideia. Claro que demora o seu tempo. O grupo já se apercebeu disso e foi graças à transparência das equipas, porque é preciso ter uma grande abertura para dizer “isto aqui funciona da forma como tem de funcionar”.

Nós queremos ser úteis e trazer mudança, mas dentro das possibilidades. Isto é uma colaboração, não é só dizermos a nossa lista de desejos do que uma instituição para jovens poderia ser. Queremos abrir novas portas, fazer com que isto flua e convide mais pessoas. Isto não vem só do Conselho.

Estamos numa dança com as equipas e tem sido muito gratificante, tanto os trabalhos durante as sessões, como os momentos entre sessões em que pensamos em conjunto sobre como isto pode beneficiar o CAM.

E gostaste muito desta sessão com a equipa do Live Arts.

Sim, esta foi a minha favorita. Porque foi aquela que trata dos temas emergentes. Enquanto a Curadoria, a Exposição e as Coleções têm que ter os pés muito assentes na terra, a Live Arts consegue escapar às restrições do espaço. Pode acontecer na rua, pode acontecer numa rotunda, pode ser onde se quiser. Aliás, é aquela que, com o edifício em construção, tem continuado.

Nesta sessão vimos que o CAM está a ir numa direção que tem potencial de atrair públicos nunca antes vistos dentro do espaço da Gulbenkian e do CAM. Deixou-me muito motivada para as próximas sessões.

Na tua candidatura dizias que existem barreiras que só podem ser dissolvidas em comunidade. Que barreiras achas que existem? E de onde vêm?

Eu acho que vêm do ego e que o ego é muito destruído quando estamos em contacto com outras pessoas. Sim, temos direitos, mas também temos deveres. Nós conseguimos encontrar um ponto médio onde essas águas se misturam. Como foi dito durante a sessão com a Curadoria, é muito importante esta união de águas e de ciclos.

Muitas das nossas ideias preconcebidas, até discriminatórias, se as resolvermos em comunidade ou em conjunto, conseguimos fazê-lo melhor.

Mas, no caso específico de uma instituição cultural o que é que identificas como uma barreira?

Podem ser barreiras em termos tão simples como a comunicação, como estamos habituados a comunicar. Ou seja, se eu não utilizar os meus pronomes, se calhar alguém que não se identifica com uma cultura ou uma sociedade heteronormativa fica mais apreensivo de entrar nesse espaço. “Já estamos em 2024 e não colocam pronomes. O que é que isto significa para mim? Será que eu posso entrar aí?” É uma das barreiras que se podia dissolver para uma certa comunidade.

Outra é “OK, sempre que eu vejo exposições são de artistas brancos, porque é que não há artistas de outra etnia?” Eu acho que isto são tudo questões que se colocam. E são essas barreiras que o Conselho está a tentar ativamente desconstruir.

Como é que se pode, nesse caso, democratizar os espaços culturais?

Democratizar é também uma das questões que nós mais falamos no grupo. Porque a nossa sociedade é tão diversa e é isso que é tão forte e tão preponderante na nossa cultura.

Uma pessoa quando diz o nome “Gulbenkian” vem com um peso, com um legado e uma história muito rica. Muitas pessoas viram sempre esse nome à distância e nunca como parte da sua vida. Pode ser porque não têm qualquer interesse em estar aqui, mas também pode ser porque esse espaço nunca se mostrou interessado em ter esse tipo de população como parte da sua audiência.

E é nesse sentido que a acessibilidade e a democratização entram. Por exemplo, o CAM em Movimento é uma iniciativa fantástica. Termos acesso à Gulbenkian de forma gratuita é fabuloso. Mas como é o transporte até à Gulbenkian? Esse tipo de coisas tem um impacto gigante. E isto envolve outra questão: porque é que os transportes públicos para Lisboa nos fins de semana têm muito menos horários? As pessoas querem visitar e não conseguem, porque não têm acesso.

Claro que pode partir da instituição e ser uma questão interna que se pode mudar, mas depois toda uma sociedade em volta pode ir de acordo com essa mudança.

Antes da reunião com a equipa das Coleções, pediram-te para selecionares duas obras. Selecionaste a Flor de Algodão da Raquel Maria e o White Horse da Lida Abdul. Porque é que escolheste estas duas?

Eu nunca vi o White Horse. Mas vi que as imagens são de um cavalo que não é branco a ser pintado de branco e pensei: “O cavalo agora está pintado de branco, vai valer mais”. Queria ver o vídeo e onde é que ia dar. Foi por essa razão.

Sobre a Flor de Algodão, primeiro foi a subtileza das cores que me atraiu imenso. E quando eu vi que a flor representada era a flor de algodão, o meu interesse por ciência e arte voltou-se a juntar, em termos de botânica, ou ciência, arte e história. Porque a flor de algodão é uma planta com um peso humano associado. Como esta planta talvez só o cacau.

Qualquer outra coisa que esteja relacionada com a escravatura pode ser argumentado, neste caso. Mas eu vi essa pintura e disse “eu quero ver isto ao vivo”. E quando a vi ao vivo, a base da pintura parecia-me carne viva. Foi muito interessante porque as raízes da flor pareciam estar assentes não em solo, mas em carne.

E por fim, quais são as tuas expectativas para o novo CAM?

Eu digo sempre que não tenho expectativas e que não gosto de ter expectativas, mas uma pessoa acaba sempre por lá chegar. Eu estou a tentar tomar um dia de cada vez e fazer cada tarefa e estar o mais presente possível quando estamos nas sessões. Já se sente a nossa presença no CAM e sou sempre recebida de forma calorosa pela equipa. Isto já é um sinal enorme da abertura e daquilo que o futuro guarda para o CAM.

Há uma grande abertura para nos ouvirem e para colaborarem connosco. É um prazer imenso ter estas sessões e estarmos com as equipas a trabalhar juntos e eu espero que, quando o CAM reabrir, o Conselho consiga sentir que contribuiu.

Claro que nem tudo o que nós sugerimos vai poder ser implementado, pelo menos de imediato. Mas é bom sentir que temos um impacto, nem que seja porque estivemos aqui e marcámos presença. Eu acho que das coisas pequenas às vezes nascem florestas. Então, de certa forma, há grandes expectativas.

Sugestões

Livro: Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho, de Malcom Ferdinand.
Música: Mercy Mercy Me (The Ecology), de Marvin Gaye.
Filmes: Abstract: The Art of Design; Neri Oxman (série).

Série

Conselho Consultivo Jovem

O Conselho Consultivo Jovem é um projeto criado com a intenção de ampliar e aprofundar a sua relação com os públicos mais jovens. É composto por nove pessoas que refletem sobre as necessidades das novas gerações, contribuindo com ideias e participando na ação e no desenho da programação do CAM.

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