«Portugal não é terra para mulheres»

«Portugal não é terra para mulheres» é o título do segundo percurso pensado por um grupo de curadoras para a exposição Histórias de uma Coleção.
30 ago 2023 14 min

O título deste percurso – Portugal não é terra para mulheres – refere-se a uma declaração do pai da artista Paula Rego, que a incentivou a afastar-se do conservadorismo opressivo que se vivia no país durante a ditadura do Estado Novo. Subjugadas a uma condição inferior, privadas de direitos e oprimidas por uma educação machista e conservadora, as mulheres suportavam um quadro social e político sombrio.

Num mundo onde a iniquidade entre géneros ainda se faz sentir, a arte assume um papel cada vez mais importante no combate à desigualdade, contribuindo para a afirmação da identidade feminina.

Entrada da Exposição / Mural

Niki de Saint-Phalle, Rêve de Jeune Fille, 1972

No trabalho multifacetado desta artista, o ideal feminista está sempre presente. Através da utilização de factos biográficos nas suas obras, focando matérias sensíveis como o incesto, Niki de Saint-Phalle estabelece uma crítica à sociedade patriarcal conservadora e à violência contra as mulheres.

Aspeto da exposição «Histórias de uma Coleção» ©Pedro Pina
Niki de Saint-Phalle, Rêve de Jeune Fille, 1972. Inv. GE248

Na litografia Rêve de Jeune Fille [Sonho de uma Jovem], a artista constrói um universo figurativo entre o onírico e o estranho, através de figuras híbridas que se situam entre o humano e o animal.

As serpentes que ameaçam a personagem feminina são uma alusão à figura violadora do seu pai, a que a artista alude no opúsculo Mon Secret [O Meu Segredo], de 1999. Estes signos expressam a sua luta interior para ultrapassar traumas em direção à criação de uma liberdade feminina.

Primeiras Aquisições

Amadeo de Souza-Cardoso, Título desconhecido (Coty), c. 1917

Amadeo de Souza-Cardoso, pioneiro do Modernismo português, participa nos revolucionários movimentos internacionais vanguardistas da época. Numa estadia forçada em Portugal, devido à I Guerra Mundial, o artista pinta uma das suas obras mais emblemáticas, que faz referência a François Coty, criador da indústria moderna de perfumes.

Aspeto da exposição «Histórias de uma Coleção» ©Pedro Pina

Encontramos uma menção prévia ao perfumista francês numa carta que Amadeo escreve a Lucie, sua esposa, em 1913, em que lhe pergunta: «Então, o perfume Coty é dos bons?».

Porém, o tema central desta obra vai muito para além do perfume. Os elementos florais e fragmentos da obra – ganchos de cabelo, um colar, espelhos e vidros – remetem-nos para o glamour da indústria da moda e para o universo feminino do início do século XX.

Amadeo de Souza Cardoso em Manhufe (Amarante, Portugal), c. 1908-1918. Arquivos Gulbenkian ASC01-44 IC
Amadeo de Souza-Cardoso, Título desconhecido (Coty), 1917. Inv. 68P11

Recordam-nos a crescente emancipação da mulher e do seu papel cada vez mais ativo na sociedade, devido a uma constante ausência da figura masculina, que se encontrava em combate, entre guerras.

A obra alude também a uma temática amplamente representada ao longo de toda história da arte: a vanitas. Já Tiziano, Velázquez e Rubens haviam pintado a nudez feminina e o seu reflexo num espelho. Todavia, Amadeo consegue dotar esta obra de uma tridimensionalidade única, envolvendo o observador e subvertendo a sua posição de voyeur, ao mesmo tempo que reflete sobre a beleza da modernidade. É o bulício inesperado de uma natureza-morta.

O Início

Lourdes Castro, Odalisque d’Après Ingres, 1964

Através de Odalisque d’Après Ingres, Lourdes Castro cita e homenageia um importante nome da pintura francesa: Jean-Auguste-Dominique Ingres. Durante o tempo que passou em Paris (1957-1983), a artista visitava frequentemente o Museu do Louvre para observar a pintura.

Aspeto da exposição «Histórias de uma Coleção» ©Pedro Pina

Odalisque d’Après Ingres abre-nos a porta a um infindável processo de experimentação baseado na exploração da sombra. A pintura em causa decompõe a obra de Ingres, transformando-a no leve contorno de uma silhueta que nega o carácter voyeurístico original. A artista retira à obra os seus referentes exóticos, mantendo apenas o contorno curvilíneo e feminino do corpo, que serve de associação imediata à pintura original.

Lourdes Castro alude, nesta obra, às inúmeras recriações de mulheres escravizadas vindas de um Oriente imaginário criadas por artistas masculinos. Através desta representação questiona também os estereótipos culturais eurocêntricos, assim como o padrão erotizado e sexualmente discriminatório da representação feminina ao longo da história da arte, tal como o farão as Guerrilla Girls cerca de vinte anos mais tarde. 

«É indispensável inaugurá-lo»

Peter Phillips, For Men Only – Starring MM and BB, 1961

For Men Only – Starring MM and BB é uma das primeiras obras criadas pelo então jovem Peter Phillips.

Um dos pioneiros da Pop Art, Peter Phillips revela, na sua obra, algumas das transformações visuais que surgiram nos anos de 1960, resultado das grandes mudanças sociais, políticas e culturais que ocorreram no pós-guerra. O artista foi fortemente influenciado pela cultura americana e incorporou linguagens visuais da publicidade e do design gráfico no seu trabalho.

Nesta pintura, agrega representações fotográficas das estrelas de cinema da década de 1950 consideradas símbolos sexuais, como Brigitte Bardot e Marilyn Monroe, e fotografias de uma famosa stripper da época, associando estas imagens ao jogo de tabuleiro vitoriano «A Lebre e a Tartaruga» – que contém a frase «she’s a doll» [ela é uma boneca].

Entre a crítica e o humor, o título For Men Only – Starring MM and BB evoca o contributo da indústria do cinema e do starsystem para a criação de símbolos sexuais femininos estereotipados.

Phillips tinha um grande respeito pela tradição histórica da arte ocidental e experimentou justapô-la aos desenvolvimentos contemporâneos, desenhando a imagem destas duas figuras dentro de um quadro esquemático que faz lembrar ícones religiosos, enquanto a composição geral da obra partilha a estrutura das xilogravuras pré-renascentistas.

Clara Menéres, O Parto, 1963

Clara Menéres foi uma artista da neovanguarda que trabalhou sobre questões de género. O seu percurso foi marcado pela diversidade de materiais e meios, tendo realizado tanto instalações como estatuária tradicional.

No contexto português, anterior à Revolução de 1974, Menéres desafiou paradigmas ao representar o corpo como contestação às construções sociais e ao modelo patriarcal.

A obra O Parto foi realizada em 1963, ano em que Clara Menéres foi mãe pela primeira vez, ainda enquanto estudante de escultura. A figura feminina em trabalho de parto é representada fragmentada e incompleta, renunciando a qualquer ideal de beleza clássico, simbolizando a violência dos costumes sobre os direitos e sobre as liberdades do corpo das mulheres.

Embora tenha utilizado o bronze, um material canónico, a escolha de representar a experiência do parto demonstra a sua intenção de romper com os tradicionais temas artísticos de idealização da mulher.

Nikias Skapinakis, Encontro de Natália Correia com Fernanda Botelho e Maria João Pires, 1974

A presente obra encerra a série Para o estudo da melancolia em Portugal, iniciada por Nikias Skapinakis em 1967. Atento ao que aconteceu em maio de 1968 em França e à esperança contida na Primavera Marcelista em Portugal, o artista representa diversas tertúlias femininas entre o final dos anos 1960 e o início dos 1970. Nos cinco retratos sociológicos que compõem a série, o pintor sublinha o mal-estar latente neste tempo de expectativas defraudadas, de fins adiados, desejos e desilusões.

Neste Encontro, surgem três rostos conhecidos da sociedade portuguesa: de braços cruzados e de perfil, a irreverente Natália Correia, intelectual de grande coragem combativa, poetisa e editora, deputada, dona de um invulgar talento oratório, antifascista, feminista e defensora da liberdade erótica; ao centro Fernanda Botelho, escritora sarcástica, presa pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE); e à direita, a única que ousa fitar o observador, Maria João Pires, de uma geração mais jovem mas comungando dos mesmos ideais, que já tinha uma carreira internacional como pianista.

Skapinakis, adepto de uma figuração muitíssimo próxima da imagética Pop, homenageia nesta tela um grupo de mulheres que estavam a contribuir para uma importante mudança do seu papel na sociedade portuguesa. Com a Revolução de Abril e o fim da ditadura, o pintor inicia nova série intitulada Os Caminhos da Liberdade, na qual algumas destas mulheres voltam a ser protagonistas da história da liberdade pela qual também lutaram.

Helena Almeida, Pintura Habitada, 1976

Pintura Habitada é um dos exemplos da vanguarda feminista da década de 1970. Helena Almeida foi uma das primeiras artistas a utilizar a autorrepresentação como tema principal da sua obra, servindo-se dela para romper com as composições tradicionais.

Nesta obra, o grande mosaico de imagens convoca o fim das tipologias rígidas, criando um trabalho híbrido através da fusão da fotografia, da pintura e da performance. A artista experienciava o seu corpo como objeto e como suporte das obras, convocando o debate de emancipação e o empoderamento da imagem da mulher.

A autorrepresentação de Helena Almeida é um dos momentos mais marcantes de um novo enquadramento social e político da arte portuguesa e da afirmação da criação feminina.

Depois das Belas-Artes

Luísa Correia Pereira, Cristiana, 1994

Inscrita na história recente da arte portuguesa, a obra de Luísa Correia Pereira foi redescoberta com a exposição retrospetiva Fiat Lux: Paris-Lisboa. Jogos Infantis e Desportos e Jogos, que decorreu no CAM, em 2003.

Aspeto da exposição «Histórias de uma Coleção» ©Pedro Pina

Luísa Correia Pereira viveu em França, não tendo exposto com regularidade em Portugal. A artista produziu poucas obras, o que, juntamente com o facto de ser mulher, pode justificar o seu reconhecimento tardio.

Ao longo de quatro décadas, Luísa Correia Pereira produziu pinturas, desenhos e gravuras que se destacam pela singularidade e pela dimensão lúdica da sua abordagem, pouco comum nas práticas artísticas da sua geração.

Aspeto da exposição «Fiat Lux: Paris-Lisboa. Jogos Infantis e Desportos e Jogos. Luísa Correia Pereira», 2003. Arquivo Digital Gulbenkian. ID: 110438

Na sua obra, existem fulgurações que vêm de um imaginário poético, utópico e fantástico, de cariz primitivista. O seu trabalho é muitas vezes comparado à Art Brut, expressão concebida por Jean Dubuffet para definir uma arte de expressão ingénua, liberta de padrões convencionais, ou ao Abstracionismo, pelo seu forte sentido experimental.

Luísa Correia Pereira, «Cristiana», 1994. Inv. 95DP1683

Em Cristiana, a gestualidade da artista manifesta-se num emaranhado de traços escuros que sustentam uma aparente figura feminina. O vermelho dos traços pode aludir ao sangue de um corpo ferido e em metamorfose – passáro? peixe? A transparência e leveza da aguarela e o fluxo dos traços vibrantes de cor intensificam o esboçar deste ser simbiótico – entre mulher voadora e mulher aquática. O título da obra inscrito no suporte, denota a importância do seu valor como qualquer outro elemento da composição.

Permanentes e temporárias

Mafalda Santos, 10 cm de Dilatação, 2019

O trabalho de Mafalda Santos reflete sobre as questões de género. A obra presente na exposição, o tríptico 10 cm de Dilatação, pode ter diversas leituras: por um lado, é uma ode à criação feminina, através da inscrição de nomes de artistas portuguesas de diferentes gerações, muitas vezes esquecidas ou ignoradas; por outro lado, o título da obra evoca também a experiência do parto, uma vez que os 10 cm correspondem à medida ideal de dilatação num parto natural.

Mafalda Santos, «10 cm de dilatação», 2019, na exposição «Histórias de uma Coleção» Inv. 20DP4643 ©Pedro Pina

Dois momentos que simbolizam o resgatar da memória histórica quanto à condição artística feminina, mas também a esperança de um novo futuro, com pleno reconhecimento.

Luísa Cunha, Senhora!, 2010

O trabalho que Luísa Cunha tem desenvolvido envolve uma abordagem performativa e de exploração da voz como matéria escultórica. As situações que cria são inesperadas e irónicas, optando sempre pela via minimalista e conceptual.

Nesta instalação, a artista utiliza a sua própria voz de forma assertiva e coloquial para pronunciar a frase «Senhora!… Toda a gente sabe». Esta frase é repetida em loop, com pequenas pausas entre cada comunicação, e enfatiza a hipotética revelação de um segredo ou uma denúncia.

A palavra Senhora é uma designação convencional, antiga, relativa a uma mulher casada, o que torna intrigante, mas também mais evidente, a mensagem expressa. O tecido vermelho-sangue que reveste a coluna de som corrobora a alegoria de algo proibido e erótico, que a frase deixa subjacente.

Paula Rego, Vanitas, 2006

Esta obra resulta de uma encomenda da Fundação Calouste Gulbenkian à artista Paula Rego, para a comemoração do quinquagésimo aniversário da instituição. Inspirado no conto Vanitas, 51 Avénue d´Iéna, de Almeida Faria, este tríptico foi mostrado pela primeira vez ao público em 2007.

As vanitas são pinturas que ligam o conceito de beleza à decadência física, com encenações de objetos que simbolizam a morte, a futilidade e a efemeridade da vida humana.

Neste tríptico, a figura feminina é destacada com um requintado vestido amarelo-dourado e representada em três poses distintas face à morte: resignada, através da figura adormecida; determinada, ao centro; revoltada na figura da direita. Outras mulheres representam universos fundamentais no seu trabalho: uma matrafona com um laço verde que, nas palavras da artista, representa «a mulher que trabalha muito, que tem muitos filhos ou abortos, que sofre»; ou a modelo Lila, vestida na cor dos deuses, imortalizando a mulher criadora, a própria artista.

Inauguração da exposição «Paula Rego. Vanitas», 2007. Arquivo Digital Gulbenkian, ID: 107446

Nesta obra, Paula Rego recorre, uma vez mais, à sua biografia para evocar o sofrimento, o medo, a traição, o luto, a depressão e a energia vital na criação deste provável autorretrato como uma vanitas. Através dele, a artista representa aspetos vivenciais complexos e comuns da identidade feminina.

Ana Vidigal, A menina limpa não é transparente, 2000

O trabalho de Ana Vidigal explora a condição da mulher na sociedade. A artista recorre a materiais diversos que encontra em caixas de família ou em feiras – fotografias, cartas, revistas, postais, vestuário, brinquedos, entre outros objetos e materiais de natureza doméstica. Tal como a vida, a sua pintura é uma acumulação de camadas, uma memória que se reconstrói no presente.

Esta obra faz parte de uma série intitulada Menina Limpa, Menina Suja, dualidade que define a própria artista, referindo-se à sua educação conservadora, em contraponto com a sua natureza rebelde. A série apresenta um jogo irónico de frases em articulação com uma figura feminina de banda desenhada, que questiona o modelo familiar conservador, associado ao papel da mulher.

Nesta composição, a figura da menina contornada a preto sobre plástico insuflável quase não tem cabeça, apenas se vê a boca. Os seus braços parecem esboçar um gesto mecanizado. As múltiplas entradas de ar que percorrem a superfície plastificada – INFLATE HERE – ativam a perceção de um corpo que, com algum sarcasmo, aumenta o seu volume. Esta menina limpa que a artista afirma não ser transparente pressupõe um confronto entre a realidade e a aparência, entre ser e parecer, uma máscara imposta pela sociedade que oculta e condiciona a emoção de viver em pleno. 

Coordenação

Emília Tavares

Curadoria

Catarina Rebelo
Georgia Quintas
Laurinda Marques
Paula Nobre
Rita Cêpa
Sofia Pascoal

Parceria

Parceria entre o CAM e a Universidade Nova de Lisboa

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