Nova obra de Gabriel Abrantes
Há uma escolha muito intencional de Gabriel Abrantes no título deste seu filme e no objeto que se lhe refere. Princesse X (1916) é uma escultura modernista de Constantin Brancusi, amplamente referenciada pela sua notoriedade plástica, mas também pelo escândalo e pela polémica que a sua apresentação pública arrastou. A obra foi por duas vezes recusada, no Salon d’Antin à data da sua realização e, em 1920, no Salon des Independants. O escândalo prendeu-se, naturalmente, com a forma que exibia, um inequívoco e exuberante falo em bronze polido, que o escultor insistentemente defendeu como a rigorosa estilização de uma figura feminina, no caso, Maria Bonaparte.
Gabriel Abrantes escolheu o objeto certeiro que melhor lhe permitiu entrar pela porta oficial da História da Arte, numa discussão onde se debate um dos temas mais fraturantes da atualidade. Na verdade, Princesse X, na sua ambiguidade extrema, na confusão que promove da representação do feminino e do masculino, perturba a ordem simbólica da distinção entre os sexos e é um objeto artístico exemplar para a discussão do género.
Gabriel Abrantes parte das características formais e temáticas desta escultura-ícone da História da Arte para criar uma narrativa própria, dentro do espírito da petite histoire, na qual lança as bases para uma discussão se colocam, com fina subtileza, ironia e arrojo visual, um desses eixos temáticos contemporâneos. Neste caso, não apenas as diferenças ou ambiguidades de género, mas também, e a partir das teorias de Freud, a sexualidade e o prazer femininos. E, como é habitual nos seus trabalhos, estes dados são lançados através de uma hábil construção narrativa, bem-humorada, aparentemente leve, escrupulosamente elegante, sem esforço programático ou evidência panfletária.
Em simultâneo, integra no seu filme acontecimentos que se cruzam com a história de arte portuguesa, no caso a singular aventura modernista de Amadeo de Souza-Cardoso e a cúmplice amizade que desenvolveu com Brancusi durante a sua passagem por Paris (1906-1914). A captação de uma imagem da pintura de Amadeo Avant la Corrida num evento expositivo comum será o sinal dessa conhecida proximidade e também, indiretamente, o apontamento de uma discussão historiográfica sobre a possível influência formal de um desenho de uma figura feminina de Amadeo de Souza-Cardoso (les mauresques, 1912) nesta polémica escultura. Gabriel Abrantes intensifica também deste modo a questão da ambiguidade representativa e interpretativa da obra de referência, do mesmo modo que expande o espectro documental e interpretativo do seu trabalho.