Julianknxx: «Ser negro e estar vivo agora»

Na sua primeira visita a Lisboa, Julianknxx fala do seu projeto «Black Corporeal», realizado em parceria com o Festival Iminente. A apresentação em Lisboa conta com a participação do coro Gospel Collective e decorre a 20 de maio no Anfiteatro ao Ar Livre da Fundação Calouste Gulbenkian.
12 mai 2023 8 min

Como é que surgiu o projeto Black Corporeal?

Surgiu porque eu estava a pensar no que significa ser negro e estar vivo agora. Foi antes da COVID-19, provavelmente algures em 2017. Enquanto pessoa negra a viver na Europa, queria ter espaço para pensar como é que nós existimos nos lugares. O modo como ocupamos o espaço, as histórias que se ligam a nós quando nos mudámos para a Europa, as múltiplas formas como cá chegámos e como o celebrámos, porque muitas vezes não há uma celebração, apenas os temas recorrentes dos estereótipos negativos da negritude. E eu queria abraçar tudo isso.

Na verdade, o projeto começou com algumas perguntas: o que é que significa viver em diferentes cidades, falar com diferentes pessoas? O que é que significa estar vivo hoje? O que é que significa ser negro em termos corporais? O que é um corpo? Como é que este se comporta nos espaços, tanto no seu mundo interior como no mundo físico?

O projeto decorre em várias cidades da Europa, sete no total. Quais foram os critérios dessa seleção?

Se refletirmos sobre a forma como chegámos à Europa, percebemos que a água desempenha um papel importante nesse processo. Por isso, é necessário pensar no movimento pré-colonial, no movimento colonial e também na forma como vivemos atualmente. A entrada em cada cidade era feita através do porto: Roterdão, Barcelona, Lisboa, Liverpool, Antuérpia, Hamburgo e Marselha.

Cidades com comunidades negras?

Sim! E a água era a forma de entrada.

Depois havia que pensar nas coisas que trazemos connosco. A música é uma parte importante. Como é que hoje usamos a música para nos reunirmos, celebrarmos, lamentarmos e sofrermos?

Na minha terra, quando há uma reunião, um casamento ou um funeral, há uma parte em que quem lidera o grupo conta uma história e começa a cantar. E foram esses momentos ou atividades culturais que, de certa forma, trouxemos connosco para a Europa e se tornaram na outra face da moeda. Basta pensar nos coros, na forma como as pessoas se juntam para cantar em harmonia.

Essas comunidades em diferentes cidades e o modo como a música evolui através delas…

Exatamente. É por isso que o coro se tornou parte da obra.

O título do projeto – Chorus in Rememory of Flight [Coro em Memória de um Voo] – é apropriado de um subtexto de um livro intitulado The Big Drum Ritual of Carriacou [O Grande Ritual dos Tambores de Carriacou], creio que intitulado Praisesongs in Rememory of Flight [Cânticos de Adoração em Memória de um Voo]. Trata-se de um livro que analisa o modo como se contam histórias no folclore, como estas são ouvidas e como a música e a narração de histórias antigas desempenham um papel importante na cultura africana.

Para mim, Chorus in Rememory of Flight aborda a ideia de nos juntarmos e de cantarmos as mesmas canções vezes sem conta, e o que isso faz ao corpo, à psique, a nós próprios, espiritual e fisicamente. «Flight» [voo] fala do movimento, da água, do movimento contemporâneo, da fuga, de todas as formas como aqui chegámos, e «rememory» [«rememória»] é a prática da escuta.

Ouvir as histórias das pessoas sem qualquer pré-conceito: ouvir apenas como chegaram aqui, o que fazem, como têm vivido a sua vida aqui e as histórias que me podem contar. Podem ser verdadeiras. Podem ser inventadas. Não interessa.

Tem alguma expectativa sobre o que Lisboa pode acrescentar ao projeto?

Quando comecei o projeto, tinha expectativas. Mas quantas mais cidades diferentes visito, mais me apercebo de que cada país tem a sua própria forma de criar cultura e a sua própria forma de convidar as pessoas para os seus espaços. Por isso, tive de desistir das expectativas e predispor-me a abraçar o desconhecido, porque muitas destas cidades são novas para mim. Os melhores momentos são, muitas vezes, aqueles que não foram planeados.

Estas cidades alimentam o projeto. Como é que vê a relação entre as atuações ao vivo e o filme que está a produzir?

Comecei por ser poeta, por isso, a performance, a poesia, a poesia escrita marcam o início da minha prática artística.

A performance tem sido parte importante no meu trabalho, mas a ideia de contar histórias e de as combinar com uma canção também já faz parte da cultura do meu país.

Neste projeto em particular, depois de falar com uma quantidade enorme de pessoas, percebemos que há sempre formas diferentes de nos presentearem: nalgumas cidades, as pessoas dançam, levam-me até à beira-mar ou à estação de comboios para realizarem a sua performance, outras convidam-me para sua casa, tomamos chá e conversamos, e algumas pessoas leem-me poemas. A minha equipa e eu reunimos todas estas performances e vamos apresentar tudo num filme.

Também escrevi peças que serão cantadas por coros nalgumas cidades; e depois existem também os poemas que são como que meditações sobre cada cidade. Como se, depois de lá ter estado, pensasse: o que é que aprendi com isto? Se pensarmos na extensão do projeto ou nas múltiplas formas que o projeto irá assumir, faz sentido que uma parte resulte numa performance ao vivo, outra seja um filme e que se venha a constituir ainda um arquivo que as pessoas possam ouvir no futuro.

O elemento performativo é também uma forma de dialogar com a cidade e de a convidar a sentar-se connosco. Com o coro em cada cidade, é quase como se estivesse a dialogar com a cidade, com a comunidade negra local: leio alguns poemas, eles cantam uma canção em resposta e o público participa em conjunto.  No final é sempre a cidade que relaciona todas as partes envolvidas.

 

julianknxx no Anfiteatro ao Ar Livre da Fundação Calouste Gulbenkian. Foto: Pedro Pina

 

A identidade e a memória são conceitos muito subjetivos, e a diáspora africana é imensamente diversa nas suas origens e destinos. Ao mesmo tempo, existe uma predominância de narrativas eurocêntricas e ocidentais.

Como é que este projeto pode contribuir para a emergência de uma consciência da diáspora negra?

Essa é uma grande questão! Para ser franco, não sei.

Tenho esperança de que, ao escutar e ao criar este arquivo, possa emergir uma linha de contacto, ou algo em que possamos pensar com cada cidade; e espero que a minha expressão, ou o meu gesto, seja apenas um pequeno elemento neste contexto. A esperança é que outras comunidades e outros espaços peguem neste trabalho e que ele possa existir para lá da sua apresentação.

Uma das coisas em que penso é que, à medida que vou percorrendo as cidades, com as entrevistas e a criação de relações com as pessoas que aí vivem, existe um processo de aprendizagem que acontece comigo e também com as pessoas que estão a participar. Essas pessoas ficam a conhecer-se umas às outras e aprendem sobre si próprias. E eu fico a conhecê-las. Portanto, é quase como que uma comunidade – não diria uma comunidade global, mas uma comunidade que se forma em torno do pensamento.

Não quero dizer que, para mim, o trabalho seja menos importante, ele é importante, mas interessa-me mais a forma como encontramos as pessoas, os próprios encontros e o que estes poderão significar no futuro.  Espero que ocorra algum tipo de mudança porque, se eu conseguir que quinhentas pessoas vejam este trabalho, pensem em conjunto e dialoguem, então o meu trabalho está feito. Mesmo que sejam apenas duas pessoas, está feito na mesma.

Nasceu na Serra Leoa e vive em Londres. Como é que esta pesquisa contribuiu para a sua própria identidade? Sente que mudou alguma coisa em si?

Para mim, a ideia de andar por aí a recolher histórias, ideias, conceitos e conhecer pessoas é quase inata. É isso que faz um Krio na Serra Leoa – a palavra «Krio» deriva da expressão «a kiri yo», que significa «sem objetivo, mas satisfeito, maravilhado». É um modo de viver em que não estamos nem aqui nem ali, mas sempre em movimento, neste espaço que habitamos.

A ideia de eu andar por aí a conhecer múltiplas identidades e pessoas está a enriquecer a minha vida e, consequentemente, a minha prática. Há uma ação extremamente colaborativa entre mim e as pessoas que encontro, seja quem for que encontre. E isso depende muito do que essas pessoas têm para me oferecer.

Ser «Krio» é como ter um encontro que dura toda a vida. Penso que é assim que crescemos enquanto seres humanos, e é assim que evoluímos, no sentido em que, quanto mais coisas diferentes encontramos, mais aprendemos, mais reaprendemos, mais desaprendemos, e assim crescemos.

Qual vai ser o resultado a apresentar no Barbican, no final deste ano?

Será uma instalação de ecrãs múltiplos. O Barbican Curve é quase como um longo caminho, uma curva muito longa – daí chamar-se «The Curve» (A Curva). O objetivo é criar um espaço de encontro em que as pessoas possam entrar e quase como que vir comigo na viagem em que encontrei estas narrativas e estas histórias. Porque ali vai ser o fim.

 

julianknxx no Anfiteatro ao Ar Livre da Fundação Calouste Gulbenkian. Foto: Pedro Pina

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