Instalação «LUGAR(es)»: Entrevista a Márcio Carvalho e Andreia Dias
O que é o Lugar? Quais são os objetivos deste projeto?
Andreia: Este é um projeto de educação artística com escolas com um elemento novo que é o facto de estarmos a trabalhar com um artista residente e com a matéria que esse artista produz.
É um projeto que, sendo centrado na obra de arte e no pensamento artístico e criativo, se propõe a trabalhar conceitos ligados à cidadania, à equidade e à justiça social, a uma educação antirracismo, empática, tolerante, que nos coloca no lugar do outro.
A escolha do artista é muito importante uma vez que trabalhamos a partir das suas obras mas também dos seus processos e pesquisas, no caso do Márcio Carvalho, descolonizar a história e os olhares, o que se liga depois com os outros eixos da educação equitativa e inclusiva. Portanto, é um projeto que se propõe a isto: partir da arte para pensar as narrativas, olhar para a(s) história(s), olhar para as múltiplas leituras, olhar para as pessoas e pôr toda a gente a pensar em conjunto sobre os lugares de que partimos, os lugares que somos, os lugares que fazemos juntos.
Porquê o Márcio?
Márcio: Os artistas são promotores de mudança. Eu estou aqui para destabilizar, abanar alicerces, olhar com olhos de quem pergunta, abrir possibilidades. Para falar sobre a origem das palavras e dos conceitos, ajudar a construir lugares coletivos de poder, de pensamento, de criação. Como é o poder instituído? Como o respeitamos? Como existem as hierarquias? Como foi criada a verticalidade?
Trabalhamos imensos conceitos. Um deles por exemplo é a ideia da desigualdade, que foi um conceito criado em inícios de 1700. Mais que criado, foi observado. Isto segundo um livro que eu estou a ler, The Dawn of Everything, que fala de como os indígenas do Norte da América encontraram esta ideia de desigualdade quando olharam para as sociedades europeias que começaram a sediar-se lá e definiram: «vocês são uma cultura desigual, vocês não têm a ideia de igualdade, vocês não a respeitam». E esta ideia depois foi agarrada por Jean-Jacques Rousseau, em 1755, para criar um documento intitulado de “Discurso sobre a origem e a base da desigualdade entre os homens” que ensaiava, pela primeira vez na sociedade europeia, esta ideia de desigualdade.
Este processo de pesquisa interessa-me, nomeadamente entender o que está na origem do conceito de história, ou do seu irmão gémeo (o mito), para que hoje, ao passarmos pela rua, observemos certos tipos de narrativas, lugares que estão no espaço público e que, na verdade, nunca constituíram uma verdadeira representação de muita gente que faz parte da cidade, das comunidades da cidade. São muitas vezes apenas representantes da ideologia de um determinado regime, de um tempo histórico, de uma determinada ideia política, que estava por trás destes “objetos” que estão no espaço público. É preciso entender, refletir, fazer perguntas, falar sobre essas coisas. Por exemplo, o lugar do poder para definir o que pontua e o que não pontua o espaço público. Exercitar a partilha do poder, a construção conjunta das decisões e das ideias, porque o poder partilhado torna-se num jogo muito interessante de debate e reflexão. Este é um dos lugares que estamos a tentar trabalhar, entre muitos.
A: Sim, aliás, trabalhámos vários lugares com cada turma, em cada sessão. Há um lugar base (falamos da noção metafórica mas também literal de LUGAR), mas depois há múltiplos lugares que se vão acionando. O lugar do poder tem a ver com o lugar de identidade, tem a ver com o lugar da partilha, o lugar da justiça, o lugar da injustiça, o lugar do outro, o meu lugar, o lugar dos superpoderes.
Noutras sessões, o lugar do amor, o lugar da arte. Porque «lugar» é um conceito a partir do qual nós todos nos construímos, que está muito presente na nossa linguagem: no meu lugar, o lugar de onde vim, o lugar onde nasci, o lugar das minhas origens – nós também trabalhamos isto no projeto.
O lugar do outro, o lugar do amor, o lugar do afeto. Os lugares da arte, do museu e da escola são também basilares para o projeto. E depois dão azo a outros lugares, como o lugar da imaginação, o lugar do voo…
M: E depois ocupa-se o espaço (que é também um lugar – na escola, no museu, na rua) de maneiras diferentes, através da música e da dança. Normalmente os alunos estão sentados nos seus lugares na sala ou a fazer atividades relacionadas com a escola, dentro da lógica habitual do lugar-escola, da aprendizagem e repetição. Com este projeto, e com a nossa entrada na sala de aula, de repente estes lugares transformam-se, as fronteiras diluem-se e de repente estão a dançar todos juntos, em roda, estão a participar, percebem que têm agência e que podem eles mesmos mudar o curso da conversa, e a sala de aula torna-se esse outro lugar através da música, do debate e dos corpos em movimento. O mesmo acontece no «Troca de Lugar».
A: O «Troca de Lugar» é uma dinâmica muito simples mas por isso mesmo muito eficaz para as crianças entenderem a ideia de lugar: nós trabalhamos sempre em círculo, seja em cadeiras, seja no chão, depende da turma.
Há esta distribuição de poder, estamos todos ao mesmo nível, somos todos importantes. Eu, o Márcio, a Mariana, a Andreia e a Joana (que são a equipa de mediação neste projeto), as próprias professoras, não somos mais importantes do que os alunos, nem queremos ocupar um lugar de poder diferenciado, hierárquico. Antes pelo contrário. Nós precisamos sempre de perceber o que já existe no grupo, no coletivo, qual é o terreno que desenhamos em comum para depois construirmos as propostas e os desafios deste lado.
No «Troca de Lugar» nós temos de trocar de lugar, é só isso. Mas a troca obedece a algumas regras, palavras de ordem e frases que são lançadas e que nos fazem pensar (e decidir se trocamos ou não de lugar). São frases que têm muito a ver com direitos humanos, com a escuta do outro, até com aprendizagem e que nos fazem pensar quem somos mas de uma forma simples e festiva. Então eles acabam por encarar o «Troca de Lugar», que já tem palmas e uma música, como um momento festivo de transformação da rotina e dinâmica escolar.
M: Gosto muito! Para nós, toda a equipa, como estamos dentro da escola, é interessante esta ideia toda de horizontalidade, às vezes eu gosto de deixar que o “caos”, o imprevisto, tome um pouco conta da coisa. Às vezes é necessário, porque o caos também faz parte da dinâmica criativa e da dinâmica infantil, faz parte da excitação, do entusiasmo. Isto tudo são energias que depois vão ser trabalhadas. Quando nós estamos a falar sobre algum assunto, é importante que eles tenham opinião, que tragam as coisas que ouviram em casa, ou na rua, ou na escola. É interessante vê-los a assimilar outras perspetivas: permite outras possibilidades no mundo.
Quando falámos dos Descobrimentos, foi interessantíssimo porque eles disseram «Quem descobriu o Brasil foi Pedro Alves Cabral». Todos queriam responder e depois fizemos um exercício assente na ideia: «imagina que agora eu chegava aqui e descobria esta sala de aula e vocês!» E eles fartam-se de rir, como quem diz: «Não, não podes descobrir-nos»! E foi aí que alguns tomaram consciência: «Mas no Brasil também já existiam pessoas». E a partir daí passa a haver outro ponto de vista para pensar, para debater e refletir. E isso abre outros lugares de fala e de leitura do mundo. Não é um ato gratuito de anular coisas para pôr outras no seu lugar.
A: Não é anular e substituir, é construir em polifonia, porque não há só uma história.
Este trabalho é feito a partir dos contributos de toda a equipa de mediação e também em colaboração com as professoras e tem sido avaliado muito positivamente por elas. Uma das coisas salientadas na avaliação do é o facto de fazermos os alunos pensar, colocarmos perguntas. Portanto, este processo é valorizado e cria um lugar importante para o futuro: o lugar do questionamento como base para a aprendizagem.
M: E há coisas que são básicas, mas criam ruturas. Por exemplo, partir sempre do pressuposto inicial de que «não há respostas erradas» cria uma rutura no sistema de repetição escolar que é: tu aprendes e lês e depois fazes a composição, fazes a cópia. Estamos sempre a copiar. Eu acho que até muito tarde, na nossa educação, copiamos porque achamos que é a forma de dar a resposta certa, esperada.
A: Habitualmente tu aprendes e lês para teres uma única resposta. E quando eles são confrontados com múltiplas respostas também é interessante. Mesmo as intervenções das professoras: há partilha de histórias de vida que, se calhar, elas não fariam (porque não era o lugar) se esta conversa não estivesse ali a acontecer, se nós não estivéssemos todos a trocar de lugares e de papéis.
M: Houve algumas situações em que nós estávamos a abordar os Descobrimentos e a professora diz: «Pois, é que a gente ainda não deu esta matéria». Mas eu vi, na cara de duas ou três professoras assomar a dúvida: «Como é que eu vou abordar isto a partir do livro sem deixar de considerar esta informação que o projeto tem suscitado?» Porque agora já não podes dizer «descobri» sem os alunos questionarem e quererem saber mais: «Então, e a perspetiva do outro lado?» Espero eu! Estas disrupções não têm como propósito fechar, mas, pelo contrário, abrir.
A: Começamos por trabalhar a História, por trabalhar temas duros da expansão marítima e partir do lugar «outro», assentando na questão: Como é que o Funaná migra de Cabo Verde para o Brasil e para Portugal? E essa pergunta permitiu compreendemos os diferentes lugares de migração, aculturação, resistência por trás desta viagem e troca cultural.
M: É porque nós estamos a abordar o Funaná como História, como música que faz História. Quando nós falamos disto, falamos no sentido de entender as muitas histórias: não são só as letras das canções, são os ritmos e os instrumentos que foram utilizados ou reutilizados, as adaptações decorrentes da necessidade e da oportunidade. Porque os acordeões estavam estragados e não havia outros, os músicos de Cabo Verde fizeram uma afinação diferente (porque há outras maneiras de afinar, outras escalas) e daí nascem sonoridades diferentes.
A música e os ritmos também são História, porque estão dentro de nós, porque nos influenciam, dão-nos uma maneira de estar ou de ter sentimentos que são diferentes. Então, tentamos abordar a questão da História não só através dos livros, das inscrições e dos seus processos individuais, cognitivos de assimilação da mesma.
A Andreia já trabalhou muito com crianças. O Márcio já tinha tido esta experiência?
M: Já. Na Alemanha trabalhei com miúdos de várias idades, dos 11 aos 25. Estes projetos sempre foram muito importantes para o meu trabalho e percurso artístico. Projetos que estavam diretamente ligados às comunidades, onde fazia questão que fossem trabalhados em colaboração e co-autoria.
Estes projetos para mim são imprescindíveis, porque há ali um grau de verdade e de construção, porque depois não é só tu dizeres «Agora vou levar conhecimento a estas comunidades». É o contrário: «Agora vou é ouvir, porque faltam estas versões» ou «Nas coisas que eu já ouvi, faltam testemunhos diretos». Para tu perceberes o porquê da História, segundo as tradições orais, ser entendida como escutar uma voz, e não um processo cognitivo e individual ligado a consulta de uma inscrição.
Eu acho interessantíssimo porque, na realidade, algumas das alternativas à história com H capital que temos, aprendemos e copiamos, são as histórias dos nossos avós ou os nossos pais, que nos criam um outro imaginário, que muitas vezes desafia o senso comum Histórico. Criam um imaginário que às vezes posiciona-se em relação ou oposição às histórias que recebemos dos livros. E então amplificamos isso, trazemos, de alguma forma, de volta a importância da oralidade que sempre esteve connosco.
A: E em algumas sessões de trabalho há alunos que ficam curiosos por perguntar mais coisas sobre a sua própria história aos avós que vieram de outros países. Como nós falámos das batucadeiras, disseram: «Mas a minha Avó é daí.» «E já conversaste com ela? Se calhar, ela sabe fazer isto, se calhar faz parte da vida dela». Portanto, também nos associou a uma série de outros lugares, de afetos, de ouvir e da História chegar até nós.
Uma das razões pelas quais nos interessou trabalhar com o Márcio foi o facto de ele já ter de alguma forma experimentado modelos de trabalho participativo, onde a criação e educação se misturam. E claro, a natureza do trabalho dele, os conceitos, e também a proximidade e disponibilidade para estes desafios. Aliás toda a equipa de mediação escolhida para o projeto tem esta experiência dos modelos participativos e colaborativos de trabalho.
Como se materializa esse trabalho com 163 crianças na instalação LUGAR(es)?
A: A instalação é resultante da capacidade que o Márcio tem de incorporar os conceitos, o processo, as ideias e estímulos deles, e enquanto artista criar um elemento visual que traduz tudo isso. É um processo muito desafiante.
M: É difícil, para mim tinha que ser uma programação de um ano, conjuntamente com estas crianças, com os pais, os avós, o CAM, as mediadoras, as professoras, etc. Mas não havia esse tempo e havia a possibilidade de apresentação mais clássica – se bem que dentro de um contentor, também não é assim tão clássico!
Eu gosto de formar espaços, lugares e criar obras de arte, a instalação é isso mesmo. Mas havia um todo de experiências que na verdade não iria ser… {A: Visível?}, porque a ideia também não era fazer uma ilustração do que se passou lá. Se fosse para fazer isso, tinha de ser uma coisa vivenciada, aconteceram muitas coisas dentro da sala de aula e essas coisas vão ficar com os miúdos, fazem parte da experiência. O que também me descansa, porque agora a responsabilidade também é deles, de crescerem e de partilharem com os pais. Houve muitas coisas que depois não ficaram no objeto final, mas o que fica no objeto final é uma tentativa de materializar um lugar novo, feito do que construímos em conjunto.
Nós trabalhamos a partir da ideia do Diorama, que tem a ver com a ideia do lugar tradicional do museu enquanto museologia de mostrar o outro. Então decidimos fazer um «contra-diorama», e sendo um «contra-diorama», tem de ter elementos que fogem um pouco à ideia de cristalizar formas para as tornar em verdades «isto é a realidade, isto é o habitat, isto foram as dinâmicas desta comunidade no mundo». Nós queremos fazer um shake the box [agitar a(s) coisa(s)].
Estávamos a tentar trazer ideias que vieram de desenhos que os miúdos fizeram ao longo do processo, dos vídeos, objetos, e tentar pôr aquilo tudo sem também… {A: Ser overwhelming [demasiado], não é?} Exato, porque se nós puséssemos o material todo que temos, era uma acumulação e uma mera ilustração.
A: Numa das vezes em que falámos de questões de poder, perguntámos «qual é o teu poder, qual é o poder que já reconheces em ti?» e houve crianças que dizem que não têm poder, e tu ficas «Como não tens poder? Todos nós temos muitos poderes.» Por isso na instalação está visível no vidro a frase da Leonor que escolheu representar-se a ela própria e escreveu «O Poder de ser eu mesma». É isto que ambicionamos! Porque o projeto também tem a ver com empoderamento, incentivar a que eles se contruam e confiem em si como pessoas, serem quem são, e terem a capacidade de reconhecer em si já essa afirmação da pessoa em quem se tornam: “o poder ou a liberdade de ser eu mesma!
Encontrei imensas coisas que jogam contra eles próprios dentro do universo das escolas, porque há muita agressividade, há muito bullying e muito racismo, há muito para resolver. Portanto, este projeto também toca no enquadramento pessoal, construção do «EU», partir do lugar de cada um para poder construir um lugar em comum. Ter a coragem de reconhecer o nosso poder de mudar o mundo começa com o reconhecimento do poder de sermos nós próprios. Isso é também um statement, uma afirmação muito forte, sobretudo se pensarmos que eles são pequeninos, têm apenas 8 a 10 anos.
Que desafios têm surgido? Quais são as reações das crianças?
M: Cada turma tem uma dinâmica diferente e por vezes está sujeita a situações distintas. Houve uma turma em especial cuja professora adoeceu e acabou por ter vários substitutos o que fez com que a turma estivesse durante uns tempos mais dispersa o que nos exigiu algumas estratégias específicas de foco. Quando a professora regressou, curiosamente, tornou-se numa das turmas mais interessantes.
A: Posso partilhar que quando fizemos uma das primeiras sessões do Diorama e Contra-Diorama lhes propusemos que ocupassem a sala de forma diferente, da forma como se queriam ver representados, e isso gerou imenso entusiasmo e mas também imensos comportamentos disruptivos.
Eu acho que tem tudo a ver com a relação afetiva que é essencial nos processos de aprendizagem e que por vezes não é tão valorizada no sistema escolar. Um professor é um modelo, um elemento de referência, por isso é que quando a professora titular regressou à turma a mudança foi incrível. Os professores têm um lugar muito importante no crescimento destes miúdos e este projeto tem-nos mostrado isso na pele, no discurso, nos afetos. O lugar que o professor ocupa, e o lugar que ele se predispõe a ocupar também, é determinante. E o lugar que está disposto a desenhar com a sua turma, em coletivo, em comunidade.
E as professoras, que feedback deram?
M: O que eu senti foi que a maior parte delas ficaram a pensar: «Eu vou ter de fazer qualquer coisa! Não vai dar apenas para chegar ao pé do livro e dar a matéria». É um desafio para elas também.
A: Eu acho que o maior desafio para as professoras provavelmente tem sido o facto de nós insistirmos muito que a educação artística não são «manualidades». A educação artística e a arte são uma forma de posicionamento sobre o mundo – de pensarmos, de vermos, de sentirmos e de interpretarmos o mundo.
Uma das professoras partilhou, depois de uma sessão, que uma das coisas mais importantes deste projeto em concreto é ficarem com mais ferramentas para abordar muitos destes temas. Como é possível que numa turma multicultural, multiétnica os manuais escolares continuem a apresentar os escravos como uma mercadoria quando têm à sua frente miúdos que são origem desta «mercadoria». É muito cruel falar-se de alguém como se fosse uma coisa ou do teu bisavô como se fosse um produto. Portanto, este projeto vem também humanizar esses lugares e permitir ter coragem para falar de outras formas.
No dia em que trabalhámos o Lugar da Voz, levámos um objeto para funcionar como detonador de reações: um microfone. Eles tinham um minuto para usar o microfone falando sobre qualquer coisa que achassem que era extremamente importante partilhar com todo o mundo e que pudesse corrigir alguma injustiça ou provocar alguma transformação, seja no mundo, seja neles. E foi incrível o que aquele microfone fez acontecer. Então, uma das professoras disse: «Vou já arranjar um microfone para ter aqui». Isto é muito motivador, saber que algumas coisas vão ficando como possíveis ferramentas de trabalho e que para elas tem sido simultaneamente desafiante e gratificante.
M: E tem sido interessante ver como o que acontece nas sessões do projeto continua a germinar nos outros lugares da vida escolar. Muitas professoras partilham connosco ideias, receios, reações dos alunos. Mudanças de perspetiva.
Eu tenho um colega que foi agora ao Portugal dos Pequenitos e ele disse-me, «A primeira coisa que eu vejo quando entro é logo as colónias. Como se fosse parte de Portugal ainda». E isso suscita reações diferentes. Temos de contextualizar., discutir, debater, mudar. Não basta pensar: «isso é História, pá! Não se pode apagar.»
Não se pode apagar a História, mas depois vais àquelas casinhas pequeninas e tens lá azulejos pequeninos a dizer: «O lugar da mulher é na cozinha e o lugar do homem é a trabalhar». «Então deixa, que faz parte da História. É assim que funciona?». Eu acho que não é assim que funciona. Acho que é preciso sentido crítico, uma grande contextualização. E isso é importante em todos os lugares. Na escola mas também na cidade, na rua.
A: Por isso também saímos da escola, para pensar o espaço público. Visitámos alguns monumentos emblemáticos que faziam sentido no decurso das temáticas. Três turmas foram ao Padrão dos Descobrimentos e quatro foram ao Arco de São Bento, aqui na Praça de Espanha. Trabalhámos temas ligeiramente diferentes, porque no pensamento das turmas também estão coisas ligeiramente diferentes e o processo é orgânico e dinâmico, mas com estratégias semelhantes. O resultado foi um registo vídeo-manifesto que integra a instalação Lugare(s). Foi a forma de abordar o «Lugar Rua».
Que outros lugares é que vocês descobriram ao longo destes meses com as crianças?
A: O Lugar do Abraço. O Lugar da Partilha. O Lugar da Mudança. E alguns mais divertidos cómicos como o Lugar Banana, que, nas palavras deles, é «super-fixe-mega-fabuloso». Este lugar banana é a resposta a uma espécie de ritual que fazíamos em todas as sessões: há um momento em que nós pedimos para resumirem numa palavra como foi aquela sessão para eles, e esta expressão do «banana» e outras engraçadas surgem nesse contexto e dão origem a novos lugares.
M: E muitos lugares não eram sequer físicos, não é? Como o Lugar Dentro de Ti.
A: E houve um Lugar Surpresa! Houve um Lugar que me deixou muito inquieta, que foi numa sessão em que trabalhámos a partir da obra de Kiluanji Kia Henda, em cima do Padrão dos Descobrimentos e surgiram conceitos que eu achava, na minha ingenuidade, que já não estavam ou não estariam ainda na cabeça de crianças tão novas, como o branco é bom e o preto é mau. Esse foi um Lugar desconcertante para mim. E o Lugar Professor que é um Lugar que precisa de ser muito regado e mimado e valorizado e acompanhado.
M: O que achei mais interessante foi criarmos o Lugar, um lugar onde eles sentem que têm liberdade para dizer o que pensam e onde não há respostas erradas também.
Houve uma criança que a dada altura no projeto acaba por confessar, quase como uma catarse, como ele próprio é um bocado agressivo às vezes. E de repente, aquele Lugar que estamos a construir passa a ser um espaço para onde podem trazer as suas coisas, partilhar, abrir-se. E poderem pensar nelas, não serem coisas reprimidas.
A: E nós queremos muito esses Lugares onde nos sentimos seguros, onde podemos ser nós, onde nos sentimos ouvidos. Isso dá confiança e aumenta a consciência das ferramentas de poder que temos para fazer mudanças. Empodera-nos. Por exemplo, houve uma turma que decidiu transformar a forma como era gerido o tempo para jogar à bola no intervalo da escola. Esta turma, como é de terceiro ano, não pode jogar à bola, porque está sempre uma turma de quarto ano a jogar à bola. Então, em vez de resolverem de uma forma agressiva, criaram uma espécie de conselho, pensaram sobre o assunto, tomaram decisões, pediram opiniões aos pais e foram falar com a outra turma para acordarem horários de utilização.
Ou por exemplo incorporarem algumas das dinâmicas do projeto em projetos seus. No sarau de ginástica usaram uma dinâmica de movimento que tínhamos feito na sessão do som, das batucadeiras, agora tornada sua.
M: Uma das coisas que eu aprendi muito rapidamente, porque eu trabalhei sempre muito fora do país foi que quando vamos para uma cultura que não conhecemos não podemos chegar lá e dizer, «Vamos fazer aqui uma obra de arte e depois o projeto está feito e eu, o artista, vou-me embora para Portugal ou para Berlim e começa nova fase».
O trabalho é uma relação que implica pensar: o que fica neles, mas também o que fica em mim. O que fica no sentido em que, depois, o que vai continuar a ser praticado na minha ausência? Eu já me fui embora, mas fica alguma coisa nestes miúdos que continuam a poder praticar, alguma coisa que continua presente? Claro que seria interessante haver sempre um contacto com estes miúdos ao longo do tempo.
A: Este projeto está a ser avaliado por uma investigadora da Universidade do Porto. A investigadora que está a acompanhar o projeto, Alice Semedo, vai entrevistá-los no final e vai tentar entrevistá-los para o ano, justamente para podermos ter uma perspetiva dos impactos no médio/longo prazo, mas depois eles mudam de ciclo e vamos deixar de conseguir segui-los. Eu gostava imenso de saber o que é que ficou daqui a 10 anos. {M: Eu acho que ficam coisas.} O que mudou?
O nosso último Lugar vai ser o Lugar Transformação. Nesta sessão, eles têm de criar plasticamente uma representação daquilo que se transformou dentro deles. Isto também é uma coisa que nós lhes perguntámos num momento de avaliação e alguns disseram coisas como: «o valorizar mais os meus sentimentos», «conseguir expressar-me ou trabalhar em equipa», «ouvir o outro».
«O que descobriste? – Descobri que consigo ser feliz. – Não eras feliz? Como aconteceu isso?». São momentos muito significativos, que não estariam a acontecer, se calhar, se não fosse o Lugar.
Participação
Márcio Carvalho – Artista convidado
Andreia Dias – CAM
Andreia Coutinho – Mediadora
Joana Simões Piedade – Mediadora
Mariana Faria – Mediadora
Realizado com
Escolas básicas de primeiro ciclo:
Castelo
Mestre Arnaldo Louro de Almeida
Querubim Lapa
S. Sebastião.