«Home» de Carlos Bunga
«Perde-se o corpo na inabitada casa das palavras,
nas suas caves, nos seus infindáveis corredores;
pudesse ele, o corpo, o que quer que o corpo seja,
na ausência das palavras calar-se.»
— Manuel António Pina, “[Uma casa]”, in Como se desenha uma casa. Lisboa: Assírio & Alvim, 2011, p. 17.
Em 2011, Manuel António Pina juntou uma série de poemas inéditos em torno do simbolismo da casa. Ao problematizar «Como se desenha uma casa», rapidamente concluiu: «com algum grau de abstracção e sem um plano rigoroso.»[1] Seguindo esta ideia de António Pina, concluímos que talvez o que procuramos ao longo de uma vida seja mesmo isso: construir uma casa que nos proteja, como um porto de abrigo, mas que não nos reprima ou prive e que, de alguma forma, nos liberte e autonomize, com um relativo desprendimento e sem um plano intransigente!
No seu projeto Home, de 2022, Carlos Bunga sinaliza e interpreta «como se desenha uma casa». Desde a origem do projeto até à colocação do contentor/casa no espaço público, o desenho da casa está subjacente à sua conceção. O desenho surge como plano e processo de criação, do «aqui e agora», fazendo a ponte entre a origem da obra e a sua permanência no espaço público, procurando uma participação ativa do visitante.
Marc Augé teve uma leitura essencial ao posicionar o termo «lugar». Para Augé os «lugares» são fundamentais porque são identitários, relacionais e históricos. Os sujeitos ligam-se aos lugares e há um reconhecimento no curso da sua vida. Há o lugar onde se nasce, o lugar de onde se vem, o lugar onde se trabalha, o lugar que se habita[2].
Para Carlos Bunga este lugar de Augé é a Casa, num sentido lato: o ventre materno – o primeiro lugar onde vivemos –, a residência de estudantes ou o estúdio como porto de abrigo; o hotel, a casa dos outros ou a amizade como domicílio; as pessoas que se amam.
A construção de uma casa é mais do que a própria casa, física e material, é uma «ferramenta para uma vida digna»[3], assinala Carlos Bunga. Ou seja, a casa é sempre, e também, uma memória física.
Quando Carlos Bunga foi convidado por mim e pela Rita Albergaria para pensar uma obra para um contentor marítimo a instalar num espaço público da cidade de Lisboa, a sua primeira vontade foi colocá-lo no rio Tejo. O contentor estaria sob uma plataforma, inacessível, mas visível. Alguns impedimentos levaram-no posteriormente a conceber Home inicialmente instalada no Terreiro do Paço e agora no Jardim Gulbenkian, com presenças claramente diferenciadoras: a primeira localização num espaço urbano em frente ao rio, onde as pessoas chegam de barco ou onde os turistas deambulam a descobrir a cidade; a segunda num local mais protegido, envolta na paisagem.
O processo de construção desta obra foi claramente ao encontro da prática artística de Bunga. Tudo o que as obras de Carlos Bunga têm em comum é uma aparência de manualidade, isto é, são todas executadas à mão, com destreza e astúcia, numa escala que se estabelece com o seu corpo.
Neste contentor, a pessoa relaciona-se de forma curiosa face a esta peça – num espaço público, onde circulam constantemente transeuntes, a casa que Bunga nos propõe está fechada, com um vidro que nos permite espreitar, mas não entrar. Há um confronto entre o nosso corpo no exterior e a casa que se encontra no interior; também permanece um certo mistério na casa que não está acessível ao nosso corpo, apenas ao nosso olhar. A ausência de mobília ou de outros equipamentos nesta obra site-specific é propositada: a relação entre o corpo e a mobília requer uma participação que aqui está ausente.
O uso do cartão no trabalho de Carlos Bunga tem um simbolismo que já foi anteriormente analisado[4], que emprenha embalagem e proteção da intimidade.
Em Home o uso de cartão prensado, fita adesiva e tinta plástica espelha fragilidade, embora o cartão se mantenha limpo e sólido; a arquitetura demonstra alguma rigidez e resistência.
A fragilidade mantém-se como problematização constante no trabalho de Bunga: nas primeiras pinturas há uma ideia de temporalidade e efemeridade – o artista fazia experiências para acelerar a degradação. Depois desta prática, o artista transferiu a pintura para conceitos espaciais.
A fragilidade é igualmente um tema biográfico, ligada a não estar em nenhum lugar, em nenhuma casa, Carlos Bunga viveu como nómada em «abrigos». Há sempre uma dimensão política e social na vida e obra do artista: fragilidade da existência humana e material, fuga, migração, expulsão, entre espaços, rua-interior, edifício-casa, entre um contentor que protege e é simultaneamente um espaço usado para ser deslocado, nómada, transformador da arte.
[1] Manuel António Pina, “[Uma casa]”, in Como se desenha uma casa. Lisboa: Assírio & Alvim, 2011, p. 9.
[2] Marc Augé, Não-Lugares. Lisboa: Letra Livre, 2012, p. 72.
[3] Nomad / Carlos Bunga. Lisboa: Documenta / Fundação Carmona e Costa, 2019.
[4] João Fernandes, “Arquiteturas de cartão”, in Carlos Bunga. Porto: Fundação de Serralves, 2013.