«’HIGHER’ evoca uma dimensão ancestral da dança como ritual, individual e coletivo.»
Qual foi a génese da performance HIGHER?
HIGHER nasceu em 2014 graças a uma residência no Teatro Frascati, em Amesterdão, onde me foi dada carta branca para propor um projeto de investigação. Na altura, o clubbing era uma prática que me absorvia completamente, de forma independente de qualquer intenção de tradução estética.
Era uma experiência intensa e complexa, com as suas muitas facetas – a vivência da noite, da música, da comunidade que se forma – e que não terminava na noite em si, ou no fim de semana, mas que reverberava ao longo dos restantes dias da semana.
Durante a residência, tentei trazer esse entusiasmo para o ateliê. Destaco a palavra «entusiasmo» e a sua raiz grega que evoca o sentimento de se ser arrebatado, como que dominado pelo poder desta experiência.
No ateliê, depressa nos apercebemos de que era impossível representar esse tipo de dispositivo, que é extremamente específico em todos os seus elementos e que é indissociável do seu espaço.
A viragem deu-se quando percebemos que não devíamos trabalhar numa representação dessa experiência, mas sim dar a perceber um eco da mesma, criar uma conversa, uma relação dialética entre a dança da noite e a dança como forma de arte. Acabara de me formar na School for New Dance Development e tinha começado a estudar artes visuais no Sandberg Instituut.
A ideia do diálogo entre as duas práticas libertou-nos de trabalhar numa representação da experiência da dança no clube. Abordá-la de um ponto de vista clínico não nos parecia correto. Porém, com esta abordagem, sentimos que não estávamos a trair, a profanar a sua essência.
Nasceu então a ideia de codificar pequenas sequências baseadas nos nossos movimentos mais típicos, alguns dos quais inspirados num tipo de dança extática muito presente naqueles anos em Amesterdão (2012-13), chamada konijnendans, a dança do coelho, uma técnica tipicamente holandesa que, por sua vez, deriva de vários estilos.
Reunir este «best of» dos nossos movimentos mais específicos numa única sequência, e depois repeti-la, fez-nos perceber que trabalhar em uníssono nos ajudava a atingir um estado, não propriamente de transe, porque a performance só dura 35 minutos, mas que se aproximava desse estado.
Embora trabalhássemos num uníssono obsessivo, as nossas especificidades emergiram – diferentes abordagens, diferentes corpos, diferentes pesos, diferentes entradas e saídas – e penso que isso acabou por tornar-se na qualidade do trabalho: na sua uniformidade, deixa transparecer a individualidade de cada um de nós.
É simbólico do que acontece na prática do clubbing e das raves, uma prática coletiva em que a experiência individual, formativa e espiritual tem um peso extremo e é catalisada pelo coletivo. A versão teatral de HIGHER, de 2014, foi apresentada numa black box, com um desenho de luz específico que precedia a performance para ajudar o público a sintonizar-se com este uníssono hipnótico de três performers, preparando o ritmo, o sistema nervoso.
Como é que a performance chegou ao Museu Stedelijk?
Em 2018, o Museu Stedelijk lançou um convite aberto a artistas residentes em Amesterdão no âmbito do programa de aquisições municipais. A exposição intitulava-se Freedom of Movement e tinha como curadora a Karen Archey. Então propus HIGHER, imaginando em conjunto com a curadora uma reconfiguração da performance para o espaço expositivo. O confronto com o espaço do museu foi importante para mim devido ao tipo de trabalho que estava a fazer.
O HIGHER apresentado no teatro era bastante hermético, os performers olhavam para baixo, concentrados no seu próprio estado de transe. O público do museu estava naturalmente mais predisposto a perceber a essência da obra. No museu, o espectador está pronto a desenvolver a sua experiência no interior do espaço estético enquanto indivíduo, a explorá-la como entidade individual, a torná-la uma experiência íntima.
Talvez sair do palco e apresentar a performance no meio das pessoas tenha resultado num envolvimento diferente. Como é que foi alterado para o HIGHER xtn?
A coreografia foi modificada para uma perceção de 360 graus, e não frontal. Continua a ser uma performance, tem uma duração fixa, a apresentação é sempre a mesma e forma-se uma coletividade à sua volta, pelo que mantém o seu carácter teatral. Porém, como tem lugar num espaço expositivo, a dimensão íntima e pessoal do espetador do museu mantém-se. Apercebi-me de que esta forma de apresentar o trabalho era muito mais eficaz.
Em 2019, apresentámos a performance no Stedelijk ao longo de quatro fins de semana. Em cada iteração, o número de performers foi aumentando – de um mínimo de três até um máximo de doze.
Talvez graças ao passa-palavra que a cadência semanal das apresentações permitiu, a participação foi tal que se tomou a decisão de transferir a performance do espaço de uma galeria para o átrio de entrada, abrindo-o gratuitamente ao público numeroso.
E então aconteceu outra coisa nova para mim: o público começou a filmar, a postar e a partilhar a performance. De repente, surgiu um novo tipo de espetador, o que talvez tenha ajudado a definir esta forma híbrida de aceder ao trabalho, que é muito especial para mim.
Que tipo de público atraiu a performance? As pessoas que se refletem na experiência do clubbing?
O público sempre foi muito transversal, extremamente diversificado: é uma obra acessível, de certa forma simples, essa é a sua qualidade. HIGHER também pode ser visto de forma abstrata: não é apenas um trabalho sobre o clubbing, mas também um trabalho sobre dançar em conjunto.
HIGHER tem as suas raízes no clubbing, mas convoca uma experiência que transcende esta cultura específica, evocando uma dimensão ancestral da dança como ritual, individual e coletivo. A música ajuda-nos a entrar nessa dimensão.
Tive a sorte de trabalhar com o Lorenzo Senni, que tem uma abordagem minimalista, abstrata e pontilhista da música eletrónica. A música em HIGHER é a desconstrução total de uma faixa techno concebida para induzir um estado hipnótico. A música é tão fundamental como nós, os performers. Não é complementar, é fundamental.
Como é que a performance será adaptada aos espaços do CAM?
Normalmente trabalhamos num espaço quadrado. Neste caso, a performance será desenvolvida mais ao longo do comprimento, adaptada ao espaço longitudinal. O tema de habitar um espaço, construir uma atmosfera, é importante para mim.
Ser coreógrafo é trabalhar com o espaço, com o movimento, com o corpo no espaço, o que vai muito para além da questão do placement.
O movimento dos performers altera a nossa perceção do espaço, cria espaços vazios e cheios, dilata-o e encolhe-o, torna-o elástico. Normalmente percebemos os objetos como emergindo do campo visual.
Por vezes, a dança permite-nos ver os espaços negativos entre os objetos, altera a hierarquia do que é percebido, mostra a continuidade… Creio que esta é a ação mágica que a dança consegue muitas vezes concretizar.