«Há um grande desejo de que o CAM seja um espaço de comunidade, um espaço aberto e que deixa as pessoas respirar.»
O que é que te fez querer participar no Conselho Consultivo Jovem (CCJ) e quais eram as tuas expectativas quando te inscreveste?
Eu participei no Gulbenkian 15-25 Imagina em 2020 e depois participei novamente em 2022. Foi um projeto fantástico de produção e de programação direcionado especialmente para o Dia Internacional dos Museus. No meio deste projeto houve sempre um desejo, da nossa parte, de continuar com uma ligação à Gulbenkian e de continuar com o projeto, pois achávamos que era necessário haver jovens dentro da instituição.
Então, quase como um desejo que se cumpriu, esta vaga apareceu. Como um desejo, mas também uma promessa que nos tinha sido feita de que nós tínhamos aberto uma porta e esta porta não se iria fechar. Quando vi esta oportunidade pensei imediatamente que tinha de concorrer. Vi a vaga no último dia da candidatura e, sem pensar duas vezes, enviei a minha proposta.
As expectativas já tinham sido criadas por esse projeto anterior. Ouvi uma frase, que foi dita por uma colega nesse projeto, que disse que nós deveríamos ser como um polvo, que toca e mexe em todas as partes da instituição. O polvo transforma-se e é um animal extremamente inteligente. É uma metáfora muito bonita.
Era essa a expectativa que eu tinha quando entrei neste Conselho, de que ia ser como um polvo. Nós vamos entrar por entre as fissuras das rochas e ver todas as suas cavernas, todos os seus recantos. E isso é democratizar as artes e chegar ao público mais jovem. Era isso que eu queria.
Mencionaste o 15-25, como foi participar nesse projeto antes de participares no CCJ? Quais são as diferenças de um projeto para o outro?
São projetos muito diferentes na sua base. No 15-25 construímos uma programação dedicada ao Dia Internacional dos Museus em 2020 e o processo acabou por ser interrompido devido ao Covid. Nós já estávamos a programar atividades, a construir, a planear temas e a entrar em contacto com os artistas. Depois tudo isto teve de ser transformado e modificado.
Era impossível esta realização do programa, as pessoas tinham de ficar em casa. Então acabamos por fazer conferências, conversas online com artistas, historiadores, filósofos, professores e ativistas. E depois em 2022 participei outra vez, mas já com uma programação física dentro do museu.
Este Conselho Consultivo, como diz o nome, é para virmos consultar. Para aconselharmos o museu ou o CAM, para sugerir modificações, dar opiniões, escrever medidas… são mesmo experiências diferentes. Todas válidas, todas incríveis, mas com processos muito diferentes.
Antes destes dois projetos como é que era a tua relação com a Fundação e com o CAM?
É uma relação longa e muito afetiva porque eu cresci em Lisboa. Apesar de ser do Porto e de ter voltado a viver no Porto, eu passei toda a minha infância em Lisboa. E foi passada muito dentro do CAM, do serviço educativo do CAM e do serviço educativo do CCB. Eu passava mesmo muito tempo dentro de grandes instituições. Consigo descrever perfeitamente como é o edifício do CAM, mesmo enquanto esteve em obras. Consigo desenhar o que estava lá antes porque tenho memórias muito vívidas do espaço, das exposições de artistas que eram convidados e das oficinas que eu acabava por fazer.
Depois essa relação continuou e cresceu. Eu tinha uma árvore favorita e tenho uma fotografia linda, em criança, abraçada a uma árvore no meio do Jardim Gulbenkian. Era a minha árvore e está na minha mesinha de cabeceira porque é muito importante para mim. Há uma relação muito afetiva com este espaço, não só com o Jardim, mas também com o CAM.
Esta relação acabou por me transformar e na vivência adulta acabei por seguir artes. Estas memórias são um ponto de referência para qualquer artista, para a sua própria investigação. Depois tudo se transformou de novo porque eu também fui para produção, então acabei por participar em vários projetos e agora estou aqui.
Como integrante no CCJ, o que achas que os jovens esperam hoje de uma instituição cultural?
Isso é uma pergunta muito complicada. Eu não posso falar por todos os jovens. Falando da minha perspetiva pessoal, eu acho que o que realmente existe é um desejo de comunicação, um desejo de não serem ignorados.
A fase da juventude é de muito medo, de muita incerteza. De repente já não somos crianças, já não vamos com a mamã ou o papá de mãos dadas a museus. Chamam-nos irreverentes e ao mesmo tempo crianças, mas já somos adultos, já começamos a ter a nossa independência. Acho que é um tempo de rebelião, mas também de procura de identidade.
Uma instituição poderia também refletir esse processo de busca e construção de identidades. Claro que é muito difícil, estamos em mudança constante, mas é por isso que é muito importante haver um diálogo entre os jovens e as instituições. Entender que é crucial falar de temas como o colonialismo, a igualdade de género, a comunidade queer, o feminismo… todos estes tópicos que são muito importantes.
É isso que os jovens querem sentir, querem sentir-se identificados com o que está dentro da instituição. Comunicar numa linguagem mais simplificada e não tão formal, uma linguagem neutra para que toda a gente se sinta identificada. Eu acho que o crucial é a identificação. Toda a gente quer sentir que está em casa em qualquer sítio. Querem sentir-se confortáveis, poderem abrir as portas e entrar dentro de uma instituição, ter um lugar.
O CCJ já decorre há vários meses. Quais foram, para ti, os momentos mais marcantes desde que começaste?
O momento mais marcante é sempre o inicial, é o entrar e perceber com quem é que vais trabalhar, visto que este trabalho só é possível porque há um grupo. É um grupo que, apesar de ter pessoas muito singulares e com backgrounds muito diferentes, se apresenta como um só. Mas existe muita diversidade dentro do nosso grupo e isso é uma força.
Acho que o momento em que nos conhecemos é o que nos marca mais. E de percebermos que agora somos uma família e vamos em conjunto investigar, somos os pequenos investigadores. Portanto, as primeiras sessões foram muito importantes. Há depois outras que marcam mais, se calhar, pela presença de algumas pessoas. As instituições são feitas de pessoas, ver as pessoas que trabalham lá dentro e a forma como reagem quando falamos com elas ou como recebem as nossas críticas e as nossas perguntas é o que marca mais. Eu acho que há uma curiosidade muito grande da nossa parte e há sempre uma resposta das pessoas da instituição.
Acho que isso foi muito importante quando fomos a Évora com a direção do CAM, com o presidente da Fundação e as direções das unidades orgânicas. Percebemos que estava toda a gente disposta a ouvir-nos e que este diálogo está realmente a acontecer, que as pessoas queriam falar connosco.
Há um interesse mútuo de conhecer e depois há pequenas sessões de interesse mais pessoal. Eu adoro a área da curadoria, portanto vou falar com a equipa da curadoria. Eu já sigo o trabalho daquelas curadoras e, por isso, existe um grande interesse da minha parte. Consigo dizer que gostei de todas as sessões que tivemos. Todas elas foram marcadas por pequenas coisas. Com a equipa de Live Arts foi importante porque nós sentimos que pusemos logo a mão na massa, foi diferente das outras.
A tua formação é em várias áreas artísticas: artes visuais, teatro, etc. A partir dessa experiência multidisciplinar, o que achas que um jovem artista espera de um espaço como este?
Eu quero simplesmente um espaço híbrido, sem fronteiras. Enquanto artista, não gosto muito de definir em que área trabalho.
Eu venho da música, fiz o conservatório de música, mas tenho uma licenciatura em artes plásticas e um mestrado em teatro. Eu venho de todas as áreas e quando me perguntam o que é que faço, eu digo que posso mostrar ou falar de projetos específicos.
Os meus interesses vão mudando, constantemente há esta mudança. Há uma ligação, mas eu não consigo dizer que sou de uma área. Eu sou das artes, ponto final. E acho que um jovem artista neste momento é muito isso e já não faz sentido pormos em gavetas de áreas.
Se calhar um centro de arte moderna deve ser isso mesmo. É um centro, é uma junção de todas estas artes e de todas estas diferentes expressões de linguagem de comunicação. Na minha opinião, é isso que um artista jovem quer de um espaço de apresentação ou exposição, que o escutem e que possa ter espaço para a exploração.
Nós estamos muito numa fase de exploração laboratorial, de investigação de nós próprios e de observação do mundo. Acabamos por ter poucos espaços que nos deixam só ser ou só mostrar. A academia faz certas restrições, pede explicações, não há uma liberdade total. Acho que se uma destas instituições pudesse dar um espaço para ensaiar, um espaço para expor, uma sala polivalente que se fosse transformando, rodando constantemente, acho que seria interessante termos uma abordagem diferente de como é feito agora.
Portanto, um espaço onde pudessem apresentar o seu trabalho, correto?
Sim, mas não só um espaço de apresentação. Mais como um centro onde existe uma comunidade, porque muitas vezes nós estamos espalhados e só nos encontramos nas inaugurações das exposições. Há pouco cruzamento até entre as áreas: quem é da música vai aos concertos de música, quem é de teatro vai ao teatro, quem é das artes plásticas vai a exposições.
Claro que há pessoas que cruzam caminhos, mas não há nenhum centro a que toda a gente vá e que promova essa interseção. Acho que era significante se houvesse dentro da Gulbenkian um desses espaços. Já têm todas estas áreas, só que estão todas, mais uma vez, separadas. Se houvesse um espaço específico para criação, para apresentação e exploração, simplesmente um espaço para a comunidade, acho que seria interessante.
E o que é que as instituições fazem que, na realidade, afasta jovens artistas?
As instituições são um espaço um bocadinho assustador. Não só pela carga que têm historicamente, mas porque há um sentimento de revolta enquanto artista. Há uma seleção muito específica do tipo de artistas que entram, do tipo de temas que entram e isso cria uma barreira e pode criar até uma repulsa em relação às instituições. Pessoas que pensam: eu não vou a estas instituições porque não me dão espaço e nunca deram espaço a pessoas como eu, artistas que têm sido ocultados da história das instituições.
Eu tenho amigos que dizem que não vão a instituições porque não concordam com o que elas foram ao longo da história, mas eu acho que é preciso mudar este olhar. Em relação ao que foram, ainda há tempo para remediar isso. Há tempo para mostrar que pode ser diferente.
Na tua carta de motivação, mencionas que trabalhaste num projeto que se chamava Viver ao Vivo em três municípios do interior do país. Como sentiste que a cultura era vivida nos espaços afastados dos grandes centros? Sentes que difere muito?
Difere muitíssimo, porque há uma estranheza. Acho que Portugal foi muito abandonado em termos culturais, pois o dinheiro vai todo para Lisboa. Em termos de candidaturas e de apoios, há uma grande parte que é centrada só em Lisboa e no Porto, mas especialmente em Lisboa. Por isso, há sempre uma estranheza quando vais programar para um sítio assim. As pessoas pensam: quem és tu para dizer o que é isto?
Quando vais trabalhar para o interior tens de entrar muito dentro da comunidade. Eu fui trabalhar para aldeias ou pequenas cidades. Houve projetos comunitários e também muitos concertos, maioritariamente de música clássica. Imediatamente pensam que vem aí um grupo de elitistas. Mas na verdade há muito interesse e há muita falta. Tu vês a comunidade a pedir, apesar de estranharem. Nós estávamos a montar palcos para um concerto no castelo de Linhares, que é no meio de um monte de pedras e só para pôr o piano lá dentro… imaginem o filme. De repente, toda a gente da aldeia veio ver como é que se punha um piano ali.
Mas isso depois trouxe as pessoas para o concerto. Houve uma conversa dentro da própria comunidade, os artistas estavam alojados nas aldeias e foram falando com as pessoas. E depois fizeram-se obras comunitárias, peças comunitárias, concertos para crianças. Houve um envolvimento muito grande. E acho que isto difere muito das grandes cidades onde há um público que vai sempre a tudo. É um público treinado a ir.
Nas aldeias não há, porque não existe programação contínua e é por isso que nós continuamos a trabalhar dentro dos municípios. Sentimos que é necessário haver uma continuação com essa comunidade, porque houve um desejo por parte deles. E não é chegar, fazer o projeto e abandonar. Há uma ligação a uma história que tem de continuar.
Nós, nas grandes cidades, às vezes sentimos que temos de levar a cultura para dentro do país, mas esquecemo-nos de que ela já lá está, do seu valor e importância.
Há cantares lindíssimos de trabalhos de campo e de fábricas que se estão a perder. Temos imensos dialetos que se estão a perder porque ninguém quer saber e as pessoas vão-se esquecendo. Não é transmitido, não existe, vai-se perdendo. E não estou a dizer que têm de ser as pessoas das cidades a irem lá, mas, enquanto artistas, acho que nós temos de ir, falar com as pessoas e mostrar que o que elas fazem também é cultura.
Achas que de alguma forma o CAM também poderia ajudar a chegar a essas comunidades?
Sim, há tantos projetos que se podiam fazer. Tanto apoio que podia ser dado.
Mais bolsas para estudantes e para projetos comunitários que podiam ser feitos fora de Lisboa e dos seus arredores. Há muitos projetos que o CAM já faz para ajudar comunidades de periferia de Lisboa. Eu posso estar completamente errada e haver mais projetos espalhados pelo país, mas realmente parece-me que acaba por ser centrado só em Lisboa ou na área metropolitana.
E acho que até era do interesse do CAM ir perceber o que é que está para lá destes limites. O que existe dentro destas aldeias que nem são assim a tantos quilómetros daqui. É muito gratificante ter trabalhado em diferentes áreas do país porque percebo que nós, apesar de sermos considerados um país pequenino, temos muita riqueza dentro dele e acho que o CAM beneficiaria muito em ir a diferentes pontos do país.
No início do projeto, escolheste duas obras da coleção do CAM, Desenho Habitado de Helena Almeida e Duet de Rui Valério. Porque é que escolheste estas duas obras?
A Helena Almeida é uma das artistas mais fascinantes que temos em Portugal. Ela é historicamente importante e sempre nutri um afeto, basta ouvir o seu nome e eu vou correr para a exposição.
Esta obra em específico é um desenho performático. É uma série de fotografias em que ela pega numa linha desenhada e há uma mudança. É ela? Ou o desenho? O que é o desenho? É um questionamento sobre a identidade. Helena Almeida é perita nisso. É mesmo uma das minhas artistas favoritas e eu queria muito ver essa obra.
Em relação à obra do Rui Valério, admito que estive a pesquisar. Vi o catálogo quase todo das obras da Coleção do CAM, senão todo mesmo, e estava muito interessada em perceber que tipo de instalações vieram para a coleção. O campo das instalações é fantástico porque é um campo híbrido que vai misturar diferentes áreas; e já conhecia algumas peças do Rui Valério.
Ele fez composições e partituras gráficas de sons, é uma obra que também aprecio e estava muito curiosa para saber qual era o som que saía daquelas colunas. Eu sou movida pela curiosidade e pela descoberta. E quando vi esta obra fiquei logo intrigada sobre como é que ela acontecia, como é que ela era no espaço. Tenho luzes, tenho dois microfones… é um dueto? Será que as pessoas vão lá e falam entre os microfones? Queria ser transportada para aquele momento daquela obra exposta. Foi por isso que a escolhi.
Que expectativas tens para a reabertura do CAM?
Há um grande desejo de que seja um espaço de comunidade, um espaço aberto e que deixa as pessoas respirar, que seja um ponto de encontro. Estes pontos de encontro são muito importantes e não é só um ponto de encontro das artes, é um ponto de encontro de pessoas, um ponto de encontro de comunidades.
É isto que quero que o CAM seja. Que toda a gente se sinta bem-vinda ao entrar, que sinta que tem oportunidade, que têm uma voz. Que até as pessoas que trabalham dentro do CAM sintam que são ouvidas, desde o diretor até à pessoa que está a varrer o chão, até ao segurança. Que toda a gente tenha um espaço para falar e para se interrogar.
Sugestões
Livro: Grapefruit, de Yoko Ono
Música: álbum Se Ve Desde Aquí, de Mabe Fratti; álbum Tutu, de Miles Davis; Playlist Women In Revolt! x Tate; Altas, de Meredith Monk
Artistas: Movimento Fluxus
Filmes: Russian Ark [A Arca Russa], de Aleksandr Sokurov; Animal Farm [O Triunfo dos Porcos], de John Halas e Joy Batchelor