Fernão Cruz

Puzzle: on the dance floor

Fernão Cruz aceitou o desafio de selecionar cinco obras da coleção do CAM para criar uma narrativa imaginária, que resultou numa breve paródia.
20 jan 2022 5 min

“Juntar obras de artistas diferentes à força é algo bruto. Constituir uma família à pressão pode obrigar a que os seus membros não se suportem. Ou então não. Pode ter o efeito contrário, quem sabe…

Há uma espécie de puzzle, composto por um número ímpar de peças, que aqui é construído. A natureza de acoplar coisas obriga-me a pensar no seu oposto, na separação, divisão ou esquartejamento dos mesmos corpos que aqui se reúnem. O simples exercício de partir um copo e voltar a colá-lo caco a caco, preferencialmente com super cola 3, dá notícia do que é contornar a lei natural da vida, ou aceitá-la. Perde-se um sentido, ganhando outro.”

— Fernão Cruz

Personagens

Conheça as 5 obras que vão dar vida a esta história.

A História

Imagine-se uma pista de dança onde estes cinco trabalhos podem estar a dançar ou perdidos no canto da sala, eufóricos ou apáticos, suados ou mortos.

O sangue corre a uma velocidade diferente em todos eles. Não há lógica mais verdadeira do que a que não consegue ser justificável.

Um torso em madeira preenchido com pão (Miguel Ângelo Rocha) dança uma valsa a solo ao som de uma explosão numa sala escura que pode ser confundida com uma constelação (Alexandre Estrela).

O torso é rodeado pelos personagens adjacentes que são partes de corpos, ossos ou letras do alfabeto feitas de cores tristes (José Escada).

A dança dura uma eternidade, o torso exibe-se para quem o vê. Nunca pediu para existir, mas foi trazido ao mundo com toda a vontade. Nunca se tinha visto um torso com tal força. Os seus músculos de pão seduziam a sala toda.

Há uma espécie de puzzle, composto por um número ímpar de peças, que aqui é construído. A natureza de acoplar coisas obriga-me a pensar no seu oposto, na separação, divisão ou esquartejamento dos mesmos corpos que aqui se reúnem. O simples exercício de partir um copo e voltar a colá-lo caco a caco, preferencialmente com super cola 3, dá notícia do que é contornar a lei natural da vida, ou aceitá-la. Perde-se um sentido, ganhando outro.

No fim da noite um mafarrico (Paula Rego) que tenta servir bebidas, mas que ninguém aceita por suspeita de envenenamento, encontra ao canto da sala uma cabeça que se está a evaporar no chão (Leon Kossoff ).

Na verdade nem se sabe se a cabeça se está a evaporar ou a desmaterializar.

O mafarrico pousa a sua bandeja na mesa e, baixando-se lentamente, pega na cabeça elevando-a a seu colo. Embala-a ao som da constelação disforme e histérica. A cabeça não fala. Aliás, ninguém fala.

O mafarrico fura a multidão de corpos de cores tristes, rasgando por entre a constelação de som. Aproxima-se do torso e apresenta-lhe a cabeça. Ambos têm a sensação de já se ter conhecido.

Sem prévio aviso a constelação que se estilhaça pela sala toda pára. As colunas avariam. Não há som. Ninguém dança. A cabeça finalmente se evapora ou desmaterializa deixando o torso sozinho.

O mafarrico salta pela janela em desespero, não suportando o silêncio. Todos os corpos, ossos e letras transformam-se em pó.

O torso fica sozinho no meio da pista de dança. Passam-se anos e continua lá. Passam-se séculos e continua lá. Passam-se milénios e continua lá. Soterrado em pó e resquícios do mundo, o torso continua intacto como se fosse feito de bronze.

Um dia estou a caminhar em parte incerta com uma pá. Pressinto que tenho de parar naquele lugar. Escavo sem parar até o som da pá tocar num objecto. Vejo o torso. Percebo que sou eu.


Biografias

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