Fernão Cruz
Puzzle: on the dance floor
“Juntar obras de artistas diferentes à força é algo bruto. Constituir uma família à pressão pode obrigar a que os seus membros não se suportem. Ou então não. Pode ter o efeito contrário, quem sabe…
Há uma espécie de puzzle, composto por um número ímpar de peças, que aqui é construído. A natureza de acoplar coisas obriga-me a pensar no seu oposto, na separação, divisão ou esquartejamento dos mesmos corpos que aqui se reúnem. O simples exercício de partir um copo e voltar a colá-lo caco a caco, preferencialmente com super cola 3, dá notícia do que é contornar a lei natural da vida, ou aceitá-la. Perde-se um sentido, ganhando outro.”
— Fernão Cruz
Personagens
Conheça as 5 obras que vão dar vida a esta história.
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A História
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Imagine-se uma pista de dança onde estes cinco trabalhos podem estar a dançar ou perdidos no canto da sala, eufóricos ou apáticos, suados ou mortos.
O sangue corre a uma velocidade diferente em todos eles. Não há lógica mais verdadeira do que a que não consegue ser justificável.
Um torso em madeira preenchido com pão (Miguel Ângelo Rocha) dança uma valsa a solo ao som de uma explosão numa sala escura que pode ser confundida com uma constelação (Alexandre Estrela).
O torso é rodeado pelos personagens adjacentes que são partes de corpos, ossos ou letras do alfabeto feitas de cores tristes (José Escada).
A dança dura uma eternidade, o torso exibe-se para quem o vê. Nunca pediu para existir, mas foi trazido ao mundo com toda a vontade. Nunca se tinha visto um torso com tal força. Os seus músculos de pão seduziam a sala toda.
Há uma espécie de puzzle, composto por um número ímpar de peças, que aqui é construído. A natureza de acoplar coisas obriga-me a pensar no seu oposto, na separação, divisão ou esquartejamento dos mesmos corpos que aqui se reúnem. O simples exercício de partir um copo e voltar a colá-lo caco a caco, preferencialmente com super cola 3, dá notícia do que é contornar a lei natural da vida, ou aceitá-la. Perde-se um sentido, ganhando outro.
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No fim da noite um mafarrico (Paula Rego) que tenta servir bebidas, mas que ninguém aceita por suspeita de envenenamento, encontra ao canto da sala uma cabeça que se está a evaporar no chão (Leon Kossoff ).
Na verdade nem se sabe se a cabeça se está a evaporar ou a desmaterializar.
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O mafarrico pousa a sua bandeja na mesa e, baixando-se lentamente, pega na cabeça elevando-a a seu colo. Embala-a ao som da constelação disforme e histérica. A cabeça não fala. Aliás, ninguém fala.
O mafarrico fura a multidão de corpos de cores tristes, rasgando por entre a constelação de som. Aproxima-se do torso e apresenta-lhe a cabeça. Ambos têm a sensação de já se ter conhecido.
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Sem prévio aviso a constelação que se estilhaça pela sala toda pára. As colunas avariam. Não há som. Ninguém dança. A cabeça finalmente se evapora ou desmaterializa deixando o torso sozinho.
O mafarrico salta pela janela em desespero, não suportando o silêncio. Todos os corpos, ossos e letras transformam-se em pó.
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O torso fica sozinho no meio da pista de dança. Passam-se anos e continua lá. Passam-se séculos e continua lá. Passam-se milénios e continua lá. Soterrado em pó e resquícios do mundo, o torso continua intacto como se fosse feito de bronze.
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Um dia estou a caminhar em parte incerta com uma pá. Pressinto que tenho de parar naquele lugar. Escavo sem parar até o som da pá tocar num objecto. Vejo o torso. Percebo que sou eu.
Biografias
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Fernão Cruz
Nasceu em Lisboa (1995), cidade onde vive e trabalha. Licenciado em Pintura pela FBAUL (2017), viveu, estudou e trabalhou em Barcelona, na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Barcelona, entre 2016 e 2017. Em 2018, apresentou o livro de autor Sretching Can Be Easy, em colaboração com Rui da Paz. Foi artista residente no BananaJam Art Space em Shenzhen, na China (2017), e no Centro de Estudos de Arte Contemporânea, em Vila Nova da Barquinha (2018). Foi vencedor do prémio nacional Arte Jovem 2017, atribuído pelo Carpe Diem Arte e Pesquisa e pela Fundação Millennium bcp.