«É isso que a arte faz. Sinto que é um caminho muito bonito de transformação das pessoas»

Leopoldina Fekayamãle refere-se ao envolvimento que tem tido com a equipa do CAM através da sua participação no Conselho Consultivo Jovem, partilha a sua experiência pessoal e como a arte permite falar de coisas muito importantes de uma forma poética.
05 ago 2024 16 min
Conselho Consultivo Jovem

O que te fez querer participar no Conselho Consultivo Jovem (CCJ) e quais eram as tuas expectativas quando te candidataste?

O texto do anúncio era muito interessante, na forma como era construído e também no que dizia: queriam jovens que tivessem uma vida ativa do ponto de vista de participação cívica em projetos, não só culturais, mas de democracia. E chamou-me logo a atenção – não sou portuguesa, sou de Angola, e estou aqui há relativamente pouco tempo – mas em Angola tinha um percurso de ativismo e dos direitos humanos já há mais ou menos uns dez anos.

Não sabia exatamente como me iria encaixar, porque, como disse, estou aqui há pouco tempo. Pensei que talvez fosse uma realidade muito diferente da minha. Mas, ainda assim, quando cheguei [a Portugal], uma coisa que fiz logo foi procurar por associações e juntar-me a pessoas que trabalhavam com direitos humanos e refletiam sobre a sociedade do ponto de vista da diversidade, equidade e justiça.

Sinceramente, não tinha muitas expectativas de poder vir a participar, pensei – acho que todos nós pensámos: é a Fundação Calouste Gulbenkian, não vou ser escolhida, muito naquela ideia de que a Fundação seria essa estrutura toda “XPTO”, como gosto de dizer, e assusta um bocado.

A minha expectativa era, como disse, por um lado aprender coisas, porque sabia que, provavelmente, se fosse selecionada, estaria num grupo que seria diverso e muito bom. A minha expectativa era aprender com essas pessoas, mas também aprender com as pessoas que iria encontrar aqui dentro da Fundação. E também, de alguma forma, trazer as minhas visões, e tudo aquilo que eu tenho de experiência de trabalho em ativismo pelos direitos humanos, mas também na área cultural; porque é uma área com a qual a Fundação trabalha, e eu tenho experiência de trabalho com bibliotecas, literatura, e a partir disso trabalho muito com cultura.

Conselho Consultivo Jovem © Diana Tinoco

Já estás no Conselho Consultivo há uns quantos meses. Até agora, no tempo que já passou, quais foram os momentos que mais te marcaram?

Muitas coisas… O trabalho que nós fizemos com algumas das equipas. Algumas das sessões, por exemplo, o trabalho com a equipa de Live Arts e a da Coleção. Com a Coleção foi mais conhecer a coleção, mas também discutir um bocado, e saber como funciona o trabalho dessa equipa. Para mim foi muito interessante, porque eu não tinha muita noção sobre isso.

Depois, a equipa de Live Arts, que foi uma das nossas melhores sessões, na qual pudemos pensar em coisas muito práticas, muito concretas, e também porque o trabalho era, muito estimulante, e as propostas – aquilo que a equipa se propõe a fazer – é muito interessante para o público jovem e foi também interessante para nós. Foi uma das coisas que me marcou mais. Mas em geral todo o percurso tem sido muito interessante.

Uma das coisas que para mim tem sido fundamental é sentir, de alguma forma, a abertura que existiu da parte das equipas e das pessoas com quem nos cruzámos para falar sobre o trabalho que desenvolvem.

Muitas vezes, estamos com equipas que têm dinâmicas de trabalho muito próprias – que têm um percurso. E quando as pessoas trabalham numa determinada coisa há muito tempo, existem hábitos estabelecidos. E sentir da sua parte essa abertura para ouvir um grupo de pessoas que vem de fora, que se calhar não tem tanta noção sobre aquilo que fazem, é muito positivo e acho que foi o que mais me marcou, porque valorizo muito o diálogo.

Há ainda mais uma coisa que me marcou: fizemos uma sessão com a Sepake [Angiama]. Ela fez uma sessão para o público, mas houve uma primeira que fez só com a equipa do CAM. Foi maravilhoso. Acho que até chorei de emoção com as coisas que ela estava a dizer. Ela trabalha muito com educação e eu sou professora de formação. E disse coisas muito importantes, falou de desafios que, quando ouves, percebes que são comuns.

Workshop de práticas corporais «Quando as nuvens se reúnem, recolhemos, quando o sol aparece, encontramos em conjunto sombra debaixo das árvores», por Sepake Angiama © Pedro Pina

Às vezes, uma pessoa está em Angola, África, e pensa que os desafios dependem dos contextos. Mas ouvi-la a falar da realidade de Inglaterra, que é onde ela trabalha, e a falar da importância de nós questionamos as próprias estruturas, ao nível da educação e dos programas que recebemos, e tentar encontrar formas mais criativas de trabalhar com isso, sobretudo, relacionar isso com arte… para mim foi muito emocionante porque é um trabalho que sempre tentei fazer enquanto professora, e então foi uma coisa que me marcou.

Foste professora de literatura em Angola, não é verdade? De que forma é que achas que essa experiência te ensinou sobre a aprendizagem da arte? Como é que isso se pode ligar ao trabalho de um Museu?

Penso que o museu, aqui, da Fundação e do CAM, ambos fazem um trabalho muito importante do ponto de vista – não sei se vou usar a palavra certa – de “educar”, mas mesmo de democratizar o acesso à arte e à cultura. Que é algo que, para mim, enquanto professora de literatura, dentro da sala de aula, lutava para fazer acontecer. E senti muito isso aqui. Do trabalho que o museu faz, dos eventos que propõe, das atividades que propõe.

Por exemplo, sinto que há uma ligação muito forte e também uma preocupação muito grande em envolver as escolas. Sobretudo escolas do ensino primário. Às vezes, quando passo por aqui, vejo muitas crianças e acho muito bonito ter crianças aqui, já desde muito cedo, nesse processo de interagirem com museus, de terem contacto com a arte, de pensarem o mundo sob outras perspetivas por meio daquilo que elas encontram aqui.

Portanto, acho que o trabalho que está a ser feito se liga muito com coisas em que eu acredito, com coisas que eu tentava fazer, inclusive. Fui recolhendo aqui ideias de atividades que poderei realizar quando voltar para Angola. Por exemplo, sair um bocado do espaço da sala de aula e ir mais para fora.

Já mencionaste a questão da importância do ativismo para ti. Como é que a arte pode ser um veículo importante nesse ativismo e na luta pelos direitos humanos?

Eu acho que é absolutamente fundamental, porque a arte fala connosco de formas que, por exemplo, um artigo académico não fala. Evidentemente sem desvalorizar os artigos académicos, que têm o seu valor. Mas a arte tem muito mais possibilidades de falar com todas as pessoas, com todos os públicos. E plantar coisas – mesmo que não seja plantar – despertar as pessoas para determinadas questões.

Se eu me sento, por exemplo, a ler um artigo sobre direitos das mulheres, o direito de pessoas racializadas, o direito dos imigrantes, ou seja o que for, que tem, sei lá, 10 páginas, que pode ser muito bom e com muito peso, também posso ouvir uma música ou ver uma peça de teatro.

Eu sou fascinada por teatro. Adoro teatro. E de cada vez que vou ao teatro quase nunca me arrependo. Acho que tenho a sorte de escolher boas peças. No outro dia eu fui ver a peça do Tiago Rodrigues, que é Na Medida do Impossível, e saí absolutamente impactada, sem palavras.

Então penso em como não estava sentada a ler um artigo, nem a ler um livro, que é uma coisa que também adoro, sou professora de literatura, mas vi uma peça e foi uma coisa extraordinária. Que falou comigo de uma forma muito potente, e é por isso que acho que a arte é fundamental nesse processo de nós lutarmos pelos direitos. Porque é uma outra linguagem, uma outra forma de chegarmos às pessoas. Acho que é um caminho muito mais rápido, arrisco a dizer, para chegarmos às pessoas e falamos diretamente ao seu coração.

No outro dia estava até a falar com uma amiga de que quero começar a explorar o caminho de escrever sobre o papel do amor dentro do ativismo pelos direitos humanos, porque sinto que é uma coisa que nos falta. Nós, no geral, estamos a combater, no sentido de estarmos a lutar pelas coisas: temos toda a garra, temos de sair à rua, temos de gritar, e isso, claro, é absolutamente importante. É importante também, fundamental, ocupar a rua, os espaços públicos. Mas fiquei-me a questionar que papel teria então o amor.

Falarmos sobre o amor e falarmos ao coração das pessoas, nas nossas lutas. Então eu quero explorar esse caminho de começar a falar sobre o amor como uma prática política dentro do ativismo. E, para mim, a arte é um bocado esse caminho. É conseguires falar sobre coisas muito importantes, sobre justiça, sobre direitos, sobre igualdade, sobre diversidade e todas as barreiras que nós enfrentamos hoje, que é absolutamente necessário, mas de uma forma poética, de uma forma que chega…

A arte transporta esse amor, também…

Sim! Exato. É combater com outro tipo de armas, e que podem até ser muito mais eficazes. E, sobretudo, enquanto professora de literatura, que trabalha com adolescentes, e que trabalha num contexto muito difícil, eu vi os meus alunos, progressivamente, a mudarem muitas coisas dentro deles, a mudarem a sua visão sobre o mundo, a sua sensibilidade, a sua forma de olhar.

O modo como chegavam, no início do primeiro ano, com ideias muito fixas, muito concretas, sobre, por exemplo, o papel de uma mulher, o papel de um homem, e chegarem ao terceiro ano de aulas, depois de termos lido tantos outros livros e de termos ouvido tantas outras músicas que eu levava, e o seu discurso mudar. Sem que tivesse precisado de forçar, de estar sempre a – como nós dizemos, militar, dentro da sala de aula, como militante das causas – mas só com os livros, com as músicas. E eles foram mudando.

É isso que acho que a arte faz. É uma abordagem, um caminho…  sinto que é um caminho muito bonito de transformação das pessoas. É simbólico, e muitas vezes não vemos os resultados logo no início, é preciso alguma paciência e acreditar que aquilo que estamos a fazer vai dar frutos.

O Conselho Consultivo teve oportunidade de participar no Dia Internacional dos Museus, na programação de algumas atividades.

Foi maravilhoso. Lançaram-nos o desafio de pensarmos em propostas de eventos para o Dia dos Museus. Já estávamos aqui há alguns meses e um dos nossos papéis principais é exatamente pensarmos com a equipa do CAM sobre a programação para a juventude. E tivemos uns dias para lançarmos ideias sobre coisas que gostaríamos de fazer.

Eu tive a ideia de fazer uma Feira de Histórias. Que depois acabou em materializar-se no “Qual é o Tea?”. Todas as ideias eram muito boas, muito bonitas, algumas ideias até acabaram por combinar-se umas com as outras. Fomos a votos e escolhemos. O processo de preparação foi muito bom, porque trabalhámos em equipas, a contactar pessoas, a falar com pessoas.

Atividade “Qual é o Tea?”, no Dia Internacional dos Museus. Jardim da Fundação Calouste Gulbenkian, maio 2024. © Pedro Pina

A ideia inicial do “Qual é o Tea?” foi, desde o primeiro momento, termos pessoas que não se conhecem de lado nenhum e que se congregassem. E até falámos sobre isso no sábado, no momento do evento. A ideia baseava-se no facto de que todas as sociedades – apesar de não nos estádios em que estamos hoje, em que existem outras dinâmicas instituídas – nalgum momento da sua história, nem que fosse nos primórdios dos primórdios, e os livros estão aí e dizem-nos isso, tiveram momentos em que viviam em comunidades nas quais a partilha oral era fundamental. Era assim que se passavam as informações e era assim que se passavam os ensinamentos. Era assim que se educavam as crianças e tudo se construía.

Algumas sociedades ainda conservam isso em África. Em Angola, nalgumas cidades no interior, ainda existem sítios em que as pessoas se sentam, num círculo, para contar histórias.

Por exemplo, na língua dos meus pais, que é o umbundo, o local onde as pessoas se sentam em círculo, que é mais ou menos o formato desta sala, para contar histórias, chama-se «jango». Até hoje, em muitas comunidades, ainda existe a estrutura do «jango», que é um sítio onde as pessoas se sentam e resolvem os problemas da comunidade, conversam, e falam sobre as suas questões.

Atividade “Qual é o Tea?”, no Dia Internacional dos Museus. Jardim da Fundação Calouste Gulbenkian, maio 2024. © Pedro Pina

Então o “Qual é o Tea?” veio um bocado dessa ideia de que precisamos de nos sentar e de nos ouvir mais. Sobretudo porque as nossas sociedades estão cada vez mais polarizadas, onde existem aqueles daquele lado, e os que estão do lado de cá. Com todas as questões políticas, com os movimentos de extrema-direita, de extrema-esquerda, e todas essas coisas que vão acontecendo… Nós vamos percebendo e sentindo que a nossa capacidade de conversar, mas, sobretudo, de nos ouvirmos uns aos outros, está em défice.

Porque, na verdade, um dos grandes objetivos do “Qual é o Tea?” era trabalharmos a escuta: de nos sentarmos e ficar ali só a ouvir a história do outro, a absorver aquela história, a sentir aquela história, e a não ter de responder, não ter de rebater, não ter de comentar, não ter de perguntar e dizer que aquilo não é bem assim, não ter de questionar, não ter de duvidar… Só estar presente, a ouvir, a escutar o outro.

Houve pessoas que ficaram desde a primeira até à última hora, ali sentadas, durante quatro horas, a ouvir, sempre com um olhar encantado, sempre com uma disponibilidade muito grande para escutar. Algumas pessoas ficaram duas, outras pessoas ficaram três horas, e foi uma experiência muito bonita.

Quando começaste o projeto, pedimos-te para escolheres duas obras da coleção do CAM: escolheste Modelo, de Maria Antónia Siza e O fardo de cada um, de João de Menezes Ferreira. Porquê estas duas?

A obra da Maria Antónia Siza  … eu estava à procura e nós tínhamos de escolher entre as 12 000 obras da coleção – e , não consegui ver tudo, confesso – mas fui vendo umas tantas e quando cheguei a essa da Maria Antónia Siza, foi amor à primeira vista. Adorei. Porquê? Porque quando olhamos para uma obra de arte, quando lemos um livro, aquilo que nós somos, o que nós pensamos e as coisas em que nós acreditamos têm um peso muito grande na forma como nós analisamos. E acho que também vem do facto de ser feminista.

Aquele quadro tem uma mulher, nua, que está sentada, que é uma mulher real. Nota-se que é uma mulher mais ou menos a envelhecer, ou seja, tens naquele quadro, e naquela mulher, as marcas do tempo. Enfim, não é uma mulher ideal, não é uma mulher que não envelhece, que não é afetada pelo tempo. Porque quando nós saímos à rua, quase em cada esquina somos confrontados com outdoors de publicidade de cremes e mais cremes… No outro dia estava a pensar que os cremes para disfarçar as rugas se chamam anti-ageing, anti-envelhecimento! E isso deixa-me muito intrigada. Como assim? Isso não faz sentido nenhum! As pessoas envelhecem. Não há forma de parar o curso do tempo. Não é possível! As pessoas vão envelhecer.

E o outro, que era O Fardo, também me chamou muita atenção, porque eu sinto… e já falámos disso entre colegas do Conselho, enquanto jovens sentimos cada vez mais uma pressão maior para sermos coisas, para sermos pessoas que estão sempre a produzir. As nossas sociedades funcionam cada vez mais na lógica e na dinâmica da superprodução. Temos de produzir, temos de ser, temos de ter, e tudo isso é um fardo enorme. É um peso enorme.

João de Menezes Ferreira, «O fardo de cada um», 1933. CAM – Centro de Arte Moderna Gulbenkian, inv. DP1312.

E, ao mesmo tempo, existem vários problemas sociais. Por exemplo, Portugal está com o problema da habitação, os jovens perguntam-se como é que vão conseguir casa? Como é que vão ter um trabalho que lhes permita ter uma casa ou ter uma vida minimamente estável? Ao mesmo tempo que tens estes problemas todos e uma série de dificuldades que tornam mais desafiante o caminho para conseguires ter uma casa e uma vida estável. Do outro lado, tens uma pressão muito grande sobre ti para seres alguma coisa. Então, quando eu vi aquele quadro, que era um homem, uma mulher e uma criança, com um fardo às costas, isso remeteu para essa ideia e essa pressão que nós sofremos atualmente.

E todos nós, de alguma forma, estamos a carregar algum fardo. E, infelizmente, isso já começa desde muito novos, desde muito pequenos, com todas essas pressões e estímulos que vêm de fora. Então identifiquei-me. Vi o quadro e pensei que eu própria podia ser uma pessoa naquela fila com um fardo às costas, e com milhares de coisas a carregar. Portanto revi-me naquele quadro porque também tenho os meus fardos. Todos nós temos os nossos e porque todos nós, de alguma forma, estamos a carregar coisas.

Às vezes existem coisas que nos aliviam, lá está, como a arte, que é para mim fundamental nesse processo de conseguirmos carregar os nossos fardos e, mais do que conseguir carregar, de irmos diminuindo o peso que têm sobre nós. Pensei em mim, mas também pensei nas pessoas que conheço, as pessoas com quem convivo, e nas conversas que tenho com os jovens sobre as nossas preocupações e todo o sofrimento que sentimos com a forma como as nossas sociedades estão construídas e da pressão de não podermos falhar, de não termos margem para falhar.

Série

Conselho Consultivo Jovem

O Conselho Consultivo Jovem é um projeto criado com a intenção de ampliar e aprofundar a sua relação com os públicos mais jovens. É composto por nove pessoas que refletem sobre as necessidades das novas gerações, contribuindo com ideias e participando na ação e no desenho da programação do CAM.

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