«A arte tem o potencial infinito da imaginação e qualquer mudança que seja ambicionada parte sempre de algo que foi imaginado.»
O que te fez querer participar no Conselho Consultivo Jovem (CCJ) e quais eram as tuas expectativas quando te candidataste?
Quando as candidaturas do Conselho Consultivo abriram, tinha acabado de entregar a tese. Tinha estado a trabalhar muito em questões relacionadas com a cultura: Como é que a arte pode ser uma forma de resistência? Como é que se pode engajar nas práticas de transformação da sociedade? Como é que a comunidade se pode juntar através da cultura e da arte para tentar lutar pelos seus direitos, pela mudança?
Quando vi a candidatura, foi um timing perfeito! Pensei «É exatamente isto que eu estou a fazer na Academia.» Durante os meus estudos, percebi claramente que não basta fazer as coisas só na Academia. Queria fazer isto na vida real, no mundo real, com pessoas reais e com a minha comunidade, que agora são as pessoas que estão à minha volta em Lisboa.
Chamou-me a atenção o facto de, uma instituição tão grande como a Gulbenkian estar a trabalhar exatamente o tema no qual estou interessada, sobre a arte como transformação social, e também de não ter medo de falar da transformação e deste ímpeto de mudança, e achei que poderia haver uma oportunidade, para mim, aqui.
Antes do projeto, já tinhas alguma relação com a Gulbenkian?
Eu sou do Porto. Vim para Lisboa apenas há três anos. Ainda estive um ano fora em Erasmus e então demorei bastante tempo a ter algum contacto com a Gulbenkian. Comecei a vir mais ao Jardim, como a maior parte das pessoas.
Nunca tinha vindo ao CAM. Por isso também acho que é interessante esta questão das minhas expectativas sem ter uma experiência preconcebida. Quase como que a trabalhar do zero, apenas com informação externa… Tinha vindo a algumas exposições na Gulbenkian.
Na faculdade, tínhamos uma cadeira sobre as dinâmicas políticas do Médio Oriente e surgiu a oportunidade de virmos em grupo, com a turma, ver a exposição Tudo o que eu quero, sobre a história das mulheres que tem sido sempre apagada. Ver o papel das mulheres, até mesmo da mulher do Gulbenkian. Essas questões são todas muito interessantes, porque também foi uma dinâmica em que a Academia veio ocupar um espaço que tradicionalmente não ocupava. Deixou-me mais disposta a conhecer este sítio.
Há pouco estavas a falar da importância da arte como agente de mudança. Na tua opinião, como é que a arte opera dessa forma? Como é que a arte pode ser esse veículo?
A arte tem o potencial infinito da imaginação e qualquer mudança que seja ambicionada parte sempre de algo que foi imaginado. E a arte tem o potencial de poder existir num imaginário, muitas vezes coletivo, e é através desse imaginário que se podem tentar criar novas possibilidades de futuro.
Não há muitas restrições, é algo muito livre. Não há cânones rigorosos ou obrigatórios. E a arte é sempre influenciada pelo nosso quotidiano e pela nossa realidade e, apesar de haver estas questões de neutralidade, a arte é uma coisa sempre muito política, está envolvida nos aspetos sociais, nos aspetos humanos que nos rodeiam. Então acho que a arte tem esse potencial de transformar estas questões de uma maneira que é facilmente entendida por toda a gente, que é facilmente difundida por toda a gente também.
Na tua carta de motivação, referiste que estás muito envolvida em grupos de defesa dos direitos humanos e em ativismo. Achas que uma instituição cultural como esta também pode ter um papel nessa área e, se sim, de que forma?
Por um lado, as instituições carregam o peso de serem estruturas, de lidarem com burocracias, de serem sistemas que estão enraizados nas produções que, obrigatoriamente, prolongam os regimes vigentes, porque são os regimes que criam as próprias instituições. Penso que o nosso papel, quer enquanto membros do Conselho Consultivo do CAM, quer enquanto jovens, ou enquanto pessoas, é tentar desafiar estas estruturas para dar uma nova vida às instituições, para criar novos caminhos e novas possibilidades.
Quando nós, enquanto jovens, usamos este espaço para questionar, este também pode ser um espaço utilizado por pessoas migrantes, por pessoas racializadas, por todos os tipos de pessoas, e de tentarmos fazer da Gulbenkian um espaço verdadeiramente mais inclusivo e mais diverso. Não faz sentido uma instituição cultural existir que não dê resposta aos problemas atuais. Ou seja, a Gulbenkian, para ser uma fundação importante e relevante, tem de ser uma fundação que se preocupa inerentemente com os direitos humanos, com as questões migratórias, de igualdade.
O Conselho Consultivo é dedicado a pensar mais as questões dos jovens. Quais são as expectativas que um jovem pode ter em relação a uma instituição cultural?
Cada vez mais esperamos ver o nosso mundo real refletido dentro das paredes, físicas ou não, de uma instituição cultural. Ou seja, ver os assuntos que são falados, que pessoas e que palcos estão a ser dados, que vozes são ouvidas.
A própria questão da representatividade dos sistemas, das pessoas. A democratização do acesso, do acesso físico mas também do acesso de quem são os artistas de quem são os públicos. Esta questão de quem é realmente ouvido, de quem é realmente representado, é muito importante. E não é só para os jovens.
Nós, os jovens, se calhar somos mais vocais sobre estas questões. Mas penso que, até mesmo inconscientemente, as pessoas procuram sentir-se confortáveis, mas também desconfortáveis, nestes sítios.
O Conselho Consultivo já dura há vários meses. Quais foram os momentos que mais te marcaram durante este período?
Em primeiro lugar, a abertura demonstrada por todas as equipas, que não esperava encontrar. O enorme diálogo, a abertura a críticas, mas também a comentários construtivos, a elogios. Toda esta troca de informações que leva as coisas para a frente.
E também a área de Live Arts. Quando ouvimos falar de Live Arts pela primeira vez, não temos muito bem a noção do que é que este nome engloba, especialmente porque não é assim tão traduzível para o português. Pensamos que é sobre teatro, ou provavelmente sobre a música, que são temas com que não estou assim tão familiarizada.
E depois descobrimos que afinal, esta categoria gigante desta equipa, desta programação, tem muito a ver com conversas, com sessões de poesia, com muitas dinâmicas do que são as artes vivas que, quando uma pessoa não está dentro da bolha cultural, ou institucional, não sabe muito bem o que é que quer dizer.
É muita informação que é facilmente perdida para nós, enquanto público externo da Gulbenkian, ou de outra instituição cultural qualquer. Então este assunto da comunicação é algo que nos questionamos sempre. E da própria linguagem utilizada.
Estas dinâmicas de estarmos, não à procura da linguagem obrigatoriamente certa – porque acho que nunca vamos chegar lá, porque há sempre problematizações –, mas de estarmos à vontade e de termos espaço para as problematizar, porque é nestes diálogos que a construção e a mudança acontecem.
O facto de que haver espaço para esses diálogos, aqui dentro, é muito importante, e também me surpreendeu. A possibilidade de temos uma sessão com o pessoal da Fundação… Haver essa abertura a algo que não era propriamente planeado com o nosso âmbito foi muito interessante. O passeio a Évora, para estar com a Administração, constituiu uma abertura muito grande.
Percebemos questões, como por exemplo os Jardins, que não estavam considerados no plano estratégico. Para quem conhece a Gulbenkian mais de fora, parece inimaginável que algo tão importante, e que é tão associado à Gulbenkian, não esteja considerado no plano estratégico.
E tudo o resto que fomos descobrindo: as dimensões das equipas, a própria composição das equipas. Há equipas bastante jovens, que era algo que não tínhamos noção. Equipas com bastantes mulheres… pequenas coisas que fomos descobrindo todos os dias.
Uma das iniciativas em que o Conselho Consultivo participou foi o Dia Internacional dos Museus. Foi um momento de materialização pública de uma coisa pensada por vocês. Tu estiveste envolvida na Silent Party. Como é que surgiu a ideia? E, apesar de não teres estado cá no próprio dia, o que pudeste entender da reação das pessoas?
Foi o primeiro desafio concreto que nos foi dado: materializar o trabalho mais teórico que estávamos a fazer de uma forma prática. Dividimo-nos em equipas mais pequenas, consoante os nossos gostos e as ideias que nós próprios tínhamos proposto, o que permitiu uma excelente dinâmica. Uma troca de ideias mais concreta, mas também mais fácil, entre grupos mais pequenos.
Houve uma abertura muito grande. Todas as ideias foram debatidas entre toda a gente. Não houve nada que fosse imposto de forma hierárquica. Foi muito interessante trabalhar deste modo muito horizontal. Houve uma grande abertura a que sugeríssemos nós próprios os DJ, no caso da Silent Party, ou as dinâmicas de haver uma playlist colaborativa, de trazer para dentro os jovens, as pessoas queer, as mulheres… Foi algo em que insistimos bastante e que se concretizou nesta escolha dos DJ, e também na questão da importância desta parte colaborativa, sempre com a participação concreta do público, que foi conseguida com a playlist colaborativa.
Foram questões que, apesar de pequeninas, todas juntas causaram um grande impacto. Quer em nós, enquanto equipa – que ficamos bastante felizes com a receção dentro do próprio CAM, com o modo como fomos tratados, com a forma como as nossas ideias foram recebidas – quer no próprio público, que beneficiou mas também participou. Penso que esta dualidade de participação e de receção é muito bonita e muito interessante. E acho que é mesmo aqui que surge a mudança.
No início do projeto do CCJ, foi-vos pedido que escolhessem duas obras da Coleção do CAM. Tu escolheste uma da Paula Rego e uma do Duane Michals, This Photograph is my proof.
A segunda obra reflete uma vertente mais romântica minha. Muitas vezes as coisas desaparecem, transformam-se, mudam, e o que temos como memória, como algo que fica, são estes vestígios da arte, estas manifestações físicas, idealizadas mas também construídas.
A obra da Paula Rego, além da questão estética, tem um lado também muito político. É uma obra sobre o aborto, com toda a intemporalidade da importância associada a essa questão. A própria coragem, a luta que foi feita através da arte, tão importante na época em que as obras foram efetuadas. E também a questão de – apesar de terem passado vários anos, e de muitas mudanças terem sido concretizadas, felizmente – existirem muitos retrocessos que estão a acontecer. A importância destas obras é que irão sempre falar-nos, e não podemos voltar a este momento da história.
Para terminar, gostaria de te perguntar quais são as tuas expectativas para a reabertura?
É interessante esta questão de não termos todos o mesmo contacto com o CAM. Sinto que se todos já conhecêssemos o funcionamento do CAM, íamos ter todos expectativas muito parecidas e o nosso trabalho também ia ser muito parecido. Penso que esta dinâmica da diferença é muito valiosa.
Para mim, o CAM é o potencial de transformação. Aliado à metáfora do novo edifício, de toda esta inovação a nível arquitetónico, a nível da arte física e do real, também pode haver esta transformação da mentalidade, da participação. Haver este sítio, uma instituição que é realmente participativa, uma instituição que está aberta a todos os públicos, não só a alguns, e que queira mesmo ouvir as outras vozes é importante. O CCJ é uma prova deste processo de auscultação, de vontade. Diversos eventos de curadoria comunitária que já têm sido realizados são também um exemplo.
Nós estamos aqui sempre a pedir por mais. O CAM já tem essa abertura e espero que continue assim a crescer neste ideal de ser mudança, de ser este farol que não só ilumina mas também comunica estas transformações que acontecem na sociedade e noutras instituições, porque se uma instituição faz uma coisa, e se for boa, outra instituição vai tomar esse exemplo. Eu acho que vai ser um enorme catalisador de mudança.
Sugestões
Livro: This Arab is Queer (ed. Elias Jahshan), Your Silence Will Not Protect You (Audre Lorde)
Filme: Portrait of a Lady on Fire (dir. Céline Sciamma), Derry Girls (TV), Hacks (TV), Fleabag (TV)
Música: Do my thing (Erika de Cassier), Rosa Rubra (João Não, Lil Noon), Países que ninguém invade (A garota não, Luca Argel)
Artista: Maria Zreiq (fotógrafa), du.algo (ilustrador)