A arca de Amadeo ou o elogio do Arquivo
(a alegria de estar nesta mesa, com o Delfim [Sardo], aos dois nos move a consciência de que um trabalho de curadoria tem sempre por trás, tempo, investigação, preparação, interrogação, ponto de vista. E quase sempre como protagonista de fundo, o arquivo, seja ele qual for)
Comecemos pelas palavras: espólio documental são duas palavras, que assim aglutinadas, sugerem peso e estatismo (o próprio som é pesado). Para quem nunca trabalhou um arquivo poderá mesmo configurar uma imagem de afundamento, um pesadelo.
Estou aqui para testemunhar o inverso.
Quando em 2000 (há 22 anos) o então diretor do CAM, arquiteto José Sommer Ribeiro me conduziu para a coordenação do catálogo Raisonné de Amadeo de Souza-Cardoso, e me depositou nos braços a tarefa de desbravar o tal espólio, estava muito longe de imaginar, até onde este trabalho me /nos iria conduzir, muito longe de imaginar como um arquivo pode ser um detonador de movimento, um voo persistente, uma aventura irresistível.
O artista ajudou, tenho de reconhecer, mas neste espólio encontrei desde logo e bem estampadas as marcas da leveza, da velocidade e de muito mais.
Ao longo de quase uma década, acompanhada por Catarina Alfaro (e também em várias fases por Leonor Oliveira na investigação) e por outros companheiros de trabalho que connosco ativamente colaboraram, (Ana Barata que está aqui nesta sala) estivemos na vertigem de estar perigosamente perto da vida de alguém, que já não estava vivo. Sobre aquele imenso mar de documentos, à medida que avançávamos, foi construído como em espelho, um céu de interrogações.
Conseguimos algumas respostas, é um facto, mas ainda mais relevante, permitimos a construção de outras tantas perguntas, que aguardam novas equipas e distintos pontos de vista.
É importante sublinhar que o artista não terá premeditado a consulta académica ou historiográfica dos seus documentos, agendas, livros, fotografias, catálogos, folhas soltas, apontamentos, cartas mais ou menos privadas, à mãe, às irmãs, ao tio Francisco, ao pai, ao Manuel Laranjeira, a tantos artistas, à Lucie Pecetto, que veio a ser a sua mulher, as únicas cartas de amor encontradas. Amadeo não sentiu necessidade de arrumar ou organizar (para a História) detalhes sobre o seu trabalho, e nos seus registos não transparece qualquer vocação sistematizadora. Toda a documentação que nos chegou, através dos vários espólios consultados, refletem uma desordem juvenil, uma urgência do fazer: «a nossa vida é toda para diante», dirá numa conhecida entrevista em 1916. A reflexão escrita programática, é episódica, fragmentada e residual, fragmentos de uma vida em movimento, ainda sem qualquer visão retrospetiva.
Só mesmo a sua estratégia de afirmação e de divulgação à volta da edição dos XX Dessins, nos surge como um ato premeditado. E este é um dado sobre o qual importa refletir. Todo o cuidado que o artista dedicou a esta edição, não só na escolha do editor, mas também na meticulosa rede de envios internacionais, transforma este álbum de 20 desenhos, publicado em 1912, num verdadeiro e antecipador portfólio. Nas páginas das suas agendas ou nas cartas a Lucie Pecetto podemos ver e analisar o laborioso engenho em que Amadeo se empenhou para que este livro chegasse às mãos dos principais agentes e protagonistas da cena artística da época, de muitas capitais do mundo ocidental. E com o retorno que já todos conhecemos, na receção crítica e nos futuros convites.
Um arquivo, tratado, organizado e disponibilizado, pode ser um poderoso agente transformador, da receção historiográfica e crítica dos artistas, da própria construção da história de arte em permanente revisão, todos os que aqui estamos sabemos isso. O caso de Amadeo é um caso especial. Sobre o artista, precocemente desaparecido em 1918, eclipsado da história durante décadas, caiu um manto aurático de uma mitificação, alimentado pelo desconhecimento da vida e da obra. Na verdade, só a apresentação continuada da sua obra (depois da inauguração do CAM, em 1983) e o estudo minucioso dos vários arquivos (da Biblioteca da Arte da Fundação Gulbenkian, dos familiares, dos arquivos internacionais, e uns conduzem aos outros) permitiram transformar as intuições em factos e o mito em realidade.
Posso avançar alguns dados que foram esclarecidos e determinados pelo seu espólio documental:
Sim, Amadeo foi um dos artistas com maior impacto mediático, crítico e de mercado no The Armory Show, nos EUA, onde vendeu sete das oito obras apresentadas. Num balanço crítico deste evento, Frederick James Gregg (publicity man do Armory Show) apresenta-o como um artista de sucesso em Moscovo e Berlim.
Foi pela mão de Sonia e Robert Delaunay que chegou ao Erster Deutscher Herbstsalon, Der Sturm, com três pinturas, em 1913. Participou no London Salon em 1914 tendo tido contactos com Roger Fry. A rede de amizades que ligou Amadeo a Otto Freundlich e este a Wilhelm Niemeyer (organizador do Sonderbund) foi essencial para clarificar a sua passagem artística pela Alemanha, requalificá-la e aprofundar a compreensão da sua obra a partir de 1913: Berlim, Colónia, Munique, Hamburgo.
A confirmação da notoriedade do seu percurso internacional passa também pela correspondência trocada com alguns dos artistas e protagonistas do meio com quem manteve fortes relações de amizade, como Amedeo Modigliani, Constantin Brancusi, Otto Freundlich e Walter Pach. Também a intensidade e turbulência do convívio com o casal Delaunay são bem conhecidas, de Paris a Vila do Conde. Amadeo nomeia com familiaridade Umberto Boccioni, Guillaume Appolinaire, Blaise Cendrars, Marie Laurencin, Albert Gleizes, Alexander Archipenko, Pablo Picasso. Na verdade, Amadeo viveu naturalmente entre os seus pares, foi um artista do mundo, viveu entre Manhufe e Paris, (entre a cidade e as serras), e todos estes factos estão documentalmente confirmados.
Recordo como foi importante nunca perder de vista as obras, não nos perdermos nas malhas narrativas da sua vida. Foi fundamental o traçado paralelo destas duas vias, permanentemente entrelaçadas e que fazem o corpo do artista.
Posso dar como exemplo a questão dos títulos. Um dos aspetos gratificantes desta pesquisa foi a recuperação de inúmeros títulos originais do artista e a correção de muitos outros, obtidos a partir do cruzamento exaustivo de informações documentais com a observação direta das obras. Este aspeto é tanto mais importante quanto ele incorpora a verdadeira identidade das obras. A partir dos catálogos que nos chegaram (através do espólio ou das pistas que ele nos deu) das obras expostas ou divulgadas em tempo de vida do artista, sabemos com clareza que Amadeo nomeia sempre os trabalhos que expõe. Mais do que isso, esses títulos, sobretudo depois de 1915, apresentam uma composição e um grafismo que o artista desenhou e fez reproduzir com fidelidade e que correspondem a uma atitude estética e autoral, explicável pelo contexto futurista ou proto-dadaísta em que foram realizados. É importante ter presente que a qualidade experimental e antecipadora da sua obra passa também por aqui, dado que só documentalmente pode ser confirmado.
E não poderei deixar de referir este dado como estrutural e evidente, foi a partir do espólio, do cruzamento entre nomes de agenda, cartas e fotografias de obras que chegámos a algumas das obras que foram localizadas. Uma delas, recordo aqui, Avant la corrida, obra desaparecida desde a sua venda no The Armory Show, em 1913, cuja fotografia do espólio, foi colocada no site da Gulbenkian, até chegar aos olhos do seu colecionador americano, herdeiro de uma pintura cujo nome do artista desconhecia. Esta pintura faz desde então parte do nosso acervo artístico.
Ao longo deste trabalho, percebi/percebemos como não devemos negligenciar a biografia dos artistas, as projeções da sua identidade e como aquilo que pode parecer acessório, conjuntural ou acidental, acaba por ecoar e reforçar o sentido das suas obras.
Em Amadeo são vários e evidentes os ecos entre a vida e a obra. O artista não tem um discurso linear, desloca-se com destreza no imprevisto, no Saut du lapin, aos ziguezagues, difícil de aprisionar em códigos, escolas, cronologias, categorias, ordenações, assim se constituindo, e resistindo a qualquer alinhamento Raisonné. «Tenho mais fases que a lua», dizia, esta sua frase é muito conhecida. Ou aquela em que desdenha as escolas, todas aquelas que no seu tempo organizaram os ismos das ruturas da vanguarda. O seu trabalho opera a fusão entre o cosmopolitismo de Paris e a vitalidade das montanhas. Não oferece um sentido único e a natureza da sua obra é polissémica.
Encontramos um pouco de tudo isto, também nos seus espólios. Na versatilidade da escrita, na letra instável, no desconcertante traçado das assinaturas. Na impermanência geográfica, no insaciável desejo de estar sempre onde não está, nos múltiplos ateliês alugados em Paris (sete ao todo, me recordo ao longo dos anos parisienses), na própria imagem plural que construiu de si próprio, tão plural como a sua obra. Faço-vos passar esta galeria de quasi-heterónimos, que apontam para algumas cumplicidades com o seu companheiro de geração Fernando Pessoa (que descreve Amadeo como o «mais célebre pintor avançado português»).
Amadeo familiar, proprietário, provinciano, engomado, cavaleiro, tocador de viola, malandrote, viajante, pintor de boina, camponês de sandálias, no centro do ateliêr, ou de novo cavaleiro, boémio à los Borrachos, jardineiro, cosmopolita, quase sempre a olhar de cima para baixo, em contrapicado, com o olhar focado, desde muito criança.
Amadeo, ele próprio foi um fotógrafo, sabemo-lo pelo seu espólio, fotografando as paisagens rurais que queria representar, e também fazendo experiências ousadas nesta disciplina, sobrepondo imagens e criando um pequeno conjunto de trabalhos, a que nunca terá dado espaço público (Margarida Medeiros refletiu sobre isso em 2016 na exposição do Grand Palais). Como em tantos outros domínios, é inútil interrogarmo-nos sobre o que teria sido a evolução destes ensaios.
E como último exemplo, também nos deixou no seu espólio, um elemento enigmático, a fotografia de uma maquete de trabalho (ou uma obra?) que parece ter servido de base para desenvolver as várias soluções plásticas, nos seus últimos trabalhos conhecidos, manipulando os elementos constitutivos deste objeto, pandeiretas, colagens de publicidade, bonecas populares, fios em ziguezague… (também são conhecidas as maquetes de Picasso no mesmo contexto) …
O vasto conjunto desta arca, permitiu-nos elevar este material, aparentemente pesado e tendencialmente imóvel, e desenhar uma estratégia, de grande movimento.
Sem ele, pouco teria sido possível.
Faço uma passagem sobre alguns factos que se sucederam. Ainda em 2006, e na impossibilidade de se concluir no curto prazo o catálogo raisonné (tantos foram os imbróglios com falsificações de obras), lançámo-nos na aventura de construir uma exposição que permitisse VER, através das obras, o verdadeiro Diálogo de Vanguardas que Amadeo viveu, através dos artistas com quem se cruzou, autor e não epígono. Com esta exposição, e os movimentos e contactos movimentos que proporcionou, diretores de museus, curadores, couriers, a curiosidade internacional sobre o artista foi reavivada e o momento de novos convites acabou por chegar para exposições internacionais, coletivas ou individuais. Logo em 2008, na Ernst-Barlach Haus, em Hamburgo, cidade onde o artista já havia exposto, e várias outras. Não me alongo no inventário, a que teremos sempre de acrescentar outras iniciativas, de outros autores e instituições. Entretanto, e para fechar, já munidos de um conjunto de edições lançadas a partir deste projeto, Fotobiografia de Amadeo, Catalogo Raisonné da Pintura, Fac-símile da Legende de Saint Julien l’Hospitalier, considerada por muitos especialistas uma das obras mais singulares e ousadas do seu tempo (1912), pudemos chegar ao Grand Palais (com a segurança de levar uma pesquisa séria nos braços) e propor a exposição individual em Paris, no ano de 2016, um século depois do artista ter sido exposto nessas mesmas salas, na Salon d’Automne, em 1912. Nunca esquecerei o assombro do então diretor, Laurent Salomé (hoje diretor de Versailles), a folhear os pesados volumes e a ver pela primeira vez as poderosas obras de um artista desconhecido em Paris, nem a pergunta (muito francesa…): mas quem é este artista, que eu não conheço??
O tempo foi-nos (é-nos) favorável, propício a uma atenção aos modernismos periféricos, às modernidades plurais (Catherine Grenier no Centre Pompidou), já distantes das leituras hegemónicas do passado. Amadeo continua o seu caminho de reconhecimento internacional, mas o nosso trabalho, deverá ser persistente e continuado, para que não seja retomado o teimoso ciclo da intermitência, da história de arte portuguesa.
Enquanto historiadora de arte neste projeto, posso assegurar-vos que é extraordinariamente difícil acrescentar uma peça a um puzzle histórico já construído e formalizado. É uma matéria resiliente. Para Amadeo e para muitos artistas de várias gerações que foram e ainda são vítimas do silêncio de um país que durante muitas décadas se fechou ao mundo. Insisto que este é um momento de abertura para novos olhares plurais sobre a história de arte e sobre os artistas.
A investigação é uma bola de neve, que cresce à medida que rola nas montanhas e se alimenta dos acasos e dos sedimentos. Faz crescer os velhos artistas e arrasta os novos.
E a aventura continua.
Enquanto escrevia esta comunicação, um amigo enviou-me um pequeno poema, datado do dia de aniversário de Amadeo, um amigo muito próximo que conhece os atalhos (ainda secretos) de uma nova aventura que se prepara, de novo em Paris. Deixo-vos e concluo com a leitura destas palavras:
a mãe ter-lhe-ia escrito, o tio (e talvez, também, as irmãs)
de modo a que a carta lhe chegasse rápida,
o mais perto possível do dia de hoje.
mas o comboio atrasou-se mais de um século
e só agora começam a chegar as cartas e as pinturas,
só hoje se começam a juntar-se as sombras e vozes
dos amigos dispersos.
Paris, 14.11.2022